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O melhor uísque falsificado do mundo (Thiago Espeche)
É evidente a tendência de homogeneização estética em comerciais e séries de TV em escala global. A estética no audiovisual, que anteriormente refletia fortemente o regionalismo de cada país, o estilo do diretor e da agência, bem como a identidade de uma marca, parece ter abandonado suas raízes para adotar uma estética internacional padronizada. Devido ao enorme acúmulo de referências facilmente encontradas nos mesmos sites, perfis e autores consagrados, muitas obras do audiovisual hoje já parecem ter sido feitas por IA, uma IA dentro da cabeça do diretor. A grande diferença é que a IA realiza em um milésimo de segundo toda essa curadoria que nos levaria anos... Ou seja, perdemos. A salvação reside em incorporar em nossos trabalhos a nossa percepção única da vida. Talvez aquilo que só você ri, pode fazer rir o mundo. O IA jamais conseguiria, nem escrever e nem dirigir, algo tão autêntico quanto o comercial "Jerry, Jerry, Jerry!" ou a campanha toda "How you doin", ambos da Budweiser (assista abaixo).
Esse assunto me lembra "A Morte do Autor", de Roland Barthes, publicado em 1967. O filósofo argumenta que uma vez que uma obra é publicada, o papel do autor deve ser suprimido, e o foco deve estar no leitor e em suas interações com o texto. Barthes defende que o texto ganha independência e significado próprio, sendo interpretado de forma única por cada leitor, permitindo uma abordagem mais pluralista e descentralizada na análise literária. Essa perspectiva enfatiza a participação ativa do leitor na construção do sentido da obra.
Parece que nossa geração leu apenas o tweet (ou "Xnãoseioque") de Roland Barthes e matou o autor de verdade. Não apenas a sua alma, mas também seu corpo, de fome. Não se tem hoje espaço para uma interpretação tridimensional das obras, a mensagem é uma só, clara, direta e, por consequência... chata e irrelevante. Na propaganda, eu compreendo, mas em séries de TV e filmes, é inadmissível. Mas estamos falando de propaganda, e o autor que encontrou “just do it” lendo o jornal, desapareceu. O autor diretor que diz “não temos referência de como será o resultado final, mas estamos com os melhores profissionais e tenho certeza que vai ficar fantástico” também desapareceu.
Matar o autor é matar o humano. É matar a ambiguidade, a tridimensionalidade de um texto, de uma obra, de um personagem e de uma linguagem. Esse também é um fator importante para que hoje muitas obras do audiovisual pareçam feitas em AI.
O problema da homogeneização estética no audiovisual aparece em um péssimo momento. Ela coincide com a perda de espaço da TV na sociedade. É crucial reconhecer que a homogeneização estética é prejudicial para as marcas, especialmente aquelas que decidem investir em publicidade televisiva. Como cobrar diferenciação de marca se todos os filmes estão iguais?
Diferenciar-se na grade publicitária requer grande investimento e imensa coragem. Chamar a atenção exige ousadia. Será que vale a pena ter um filme bonito, mas igual a todos os outros? Será mesmo que esses recursos, que exigem tanto tempo e dinheiro para serem filmados, realmente chamam a atenção? Será que apenas isso seria suficiente para capturar o público jovem? Atualmente, um comercial de cartão de crédito tem mais acrobacias do que toda a franquia "Velozes e Furiosos", um comercial de cerveja é mais sombrio que "O Poderoso Chefão", um homem correndo na esteira no ar-condicionado em 19 graus com seu super tênis sofre mais exaustão do que todo o elenco de "A Paixão de Cristo". Não é que eu não goste dessas estéticas, apenas não acredito que o posicionamento de todas as marcas se encaixe em apenas um par de gavetas. É possível investigar mais, misturar mais... Até na categoria "filmes diferentes", todos os “filmes diferentes” estão iguais.
Se você investe em TV hoje, você deveria ser corajoso e pedir para a sua agência fazer a coisa mais chamativa possível sem que isso ofenda alguém. Fico pensando: hoje, deveríamos ligar a TV e assistir a algumas barbaridades maravilhosas. Razões não faltam. Linguagens não faltam. Talentos não faltam. Somos um dos mercados mais criativos do mundo. O resultado de Cannes nessas décadas prova isso. A expressão popular "fazer o feijão com arroz" não deve ser menosprezada. Jamais uma refeição tão nutritiva poderia ser depreciada.
No longa-metragem "Nem tudo é verdade", do brasileiro Rogério Sganzerla, um filme corajoso que mistura documentário e chanchada, Arrigo Barbabé interpreta Orson Welles quando ele veio ao Brasil em 1942. Segurando um coco verde e um papagaio com uma postura claramente shakespeariana, ele diz: "O Brasil é o país que produz o melhor uísque falsificado do mundo". Essa provocativa afirmação de Sganzerla pode ser interpretada como uma crítica à homogeneização e falta de originalidade nas produções audiovisuais. Assim como o uísque falsificado, muitas produções audiovisuais podem parecer genuínas à primeira vista, mas carecem da verdadeira essência e autenticidade.
Para mudar esse cenário, é necessário romper com a tendência da homogeneização estética e abraçar a diversidade e a criatividade que o mercado brasileiro oferece.
Em suma, é hora de resgatar a originalidade e a diversidade na produção audiovisual brasileira. Ao fugir das fórmulas pré-definidas e da homogeneização estética, podemos criar obras que se destacam pela autenticidade, valorizando a verdadeira essência humana em cada produção. Devemos ousar e explorar todo o potencial criativo do nosso mercado, trazendo à tona histórias únicas e significativas que ressoem com o público, deixando de lado a mera imitação vazia de tendências internacionais. Somente assim poderemos revitalizar a arte audiovisual e garantir que nossas produções deixem uma marca duradoura na sociedade.
Thiago Espeche, diretor e roteirista no Brasil e na Argentina e fundador da produtora Chucky Jason
Leia texto anterior da seção "O Espaço é Seu", aqui.