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O Espaço é Seu

Desalinhando (Thiago Espeche)

04.06.24

A cada dia está mais fácil saber o que é bonito. E isso é um perigo. Eu lembro de um dia na agência, a gente discutindo sobre as meias brancas, como alguém poderia usar meias brancas?... Hoje as meias brancas estão na moda. Não faz muito tempo, o degradê era um palavrão. Um erro mortal. Você poderia ser demitido se usasse um degradê em suas tipografias. E não é brincadeira! Era sinônimo absoluto de mau gosto.

Se está tudo alinhado, está bonito. Se está desalinhado, está feio. O termo “desalinhado” já acentua algo fora do eixo, fora do normal. Agora, será mesmo que a harmonia dos sistemas traz a beleza em seu interior? Quando fui diretor de arte em Buenos Aires, meu head of art ficava buscando cada espaço mal ajustado em um alinhamento de sistema perfeito. Eu pensava: se fazer algo bonito é simplesmente fazer algo alinhado e harmônico, tá fácil. Porém, quando olhava suas composições, nada me movia por dentro. Se a função do D.A. é resumida por alguns autores como “resolver conflitos estéticos”, alinhar os elementos parece ser algo lógico. A não ser que você interprete todo esse alinhamento como um conflito. E é aí que me encontro.

Hoje você não vai ao shopping e compra um tênis. Hoje você compra um sistema completo: tênis, meia, calça, camiseta, blusa, jaqueta, correntinha, onde todos os elementos estejam alinhados a um estilo só, um sistema. E esse estilo não é seu. Ele já está pronto. Você o encontra antes ou depois do amiguinho, mas já está pronto. Uma pessoa que veste um conjunto de regras é bonita? Até moda infantil está assim. Vejo constantemente crianças vestidas como diretores de marketing, designers, todos alinhadinhos, parecem até artistas do Pinterest. E eles só têm três anos. Isso é bonito? Eu adoro ver crianças vestidas como crianças. Sujas e desalinhadas. As lentes de contato de porcelana alinham os dentes, mas essas porcelanas não conseguem cobrir o fato da pessoa ter cerrado todos os seus dentes deixando eles com estacas. Sem falar na harmonização facial. O comercial da DieselKeep the World Flawed” mostra isso de forma hilária.

Um raciocínio alinhado e coerente realmente promove um entendimento melhor do conteúdo. Se o objetivo é “explicar melhor o conteúdo”, alinhar as ideias é definitivamente o que deveria ser feito. Porém, os poetas alinham as ideias? Pode ser que em algum lugar sim, mas não é tão óbvio. O objetivo do poeta não é explicar. Inclusive, seu objetivo é quase totalmente o contrário. O design precisa explicar e, por isso, precisa estar alinhado? A arte, não. É isso? Design não é arte? Não sei... Deixo aqui a provocação.

A esperança de conseguir alinhar a vida às suas expectativas vem deixando um vazio enorme em muita gente. Se você conseguir alinhar todas as suas tarefas, provavelmente você viva igual a um animal em um zoológico: comida na hora certa, 3L de água fresquinha, abrigo, banho... mas, cara, é um zoológico. A selva também está alinhada, mas é menos óbvio seu alinhamento. Muitas pessoas preferem viver no zoológico que na selva. Quem não gostaria de viver em um condomínio de luxo? Pode parecer bonito, mas é preciso ver com outros olhos. Até o imaginário de “paraíso celestial” tem a mesma grama perfeitamente alinhada e aparada assim como os condomínios de “alto padrão”. Isso é no mínimo estranho.

Um dia, conversando com o Zé Carvalho, mestre em literatura, roteirista e professor de dramaturgia, ele me disse: "Espeche, vou te dar um presente. Uma palavra: Estesia!" Fui na internet: “Estesia: capacidade de perceber o sentimento da beleza”. Uau! Era isso! Existe um sentimento claro que explicava aquele frio na barriga, aquela ausência de ar que sentia às vezes quando via algo de tal beleza que me emocionava. Um sentimento tão claro quanto a saudade, a alegria, a tristeza, o medo... a estesia! Agora, eu sabia exatamente o que estava sentindo quando ficava olhando o lixo reciclado, observando como um Veja azul, uma lata de Coca vermelha, um pedaço de plástico bolha e uma conta de luz, juntos, daquele jeito, formavam um sistema por composição maravilhoso e me fazendo demorar mais para fechar a tampa do lixo. Ou aquela mistura no metrô da calça de um com o tênis do outro e a jaqueta daquele lá... ficaria irado. Uma palavra que explica aquele fôlego que desaparece por milésimos de segundo, que te completa.

Estesia implica uma sensibilidade elevada à beleza. Envolve uma resposta emocional intensa ao belo, onde a contemplação da arte ou da natureza provoca sentimentos profundos de prazer, admiração ou até mesmo êxtase. A estesia é uma experiência altamente subjetiva, variando de pessoa para pessoa. O que pode ser percebido como belo por uma pessoa pode não evocar a mesma resposta em outra. Na arte, a estesia se manifesta quando uma obra provoca uma resposta emocional profunda. Um quadro, uma escultura, uma peça de música ou uma performance teatral podem evocar sentimentos de beleza intensa.

Talvez, se você sente muito isso, é provável que tenha escolhido trabalhar com as artes justamente para estar rodeado de coisas bonitas e para ter a estesia te visitando constantemente. Talvez, depois de criar algo belo, que interpreto como uma autoaplicação de estesia intra-venal, ver algo belo é um sentimento vizinho mais nobre. Por isso, seja lá em qual posição no campo você esteja jogando no mundo das artes, seja criando ou atendendo, estamos aqui simplesmente para celebrar a estesia. E não para checar se tudo está alinhado ou rezar pelas regras da harmonia. Acredite na sua percepção. Ela é o fio que conecta o seu corpo com a energia da grande beleza. E definitivamente, esse é um caminho maravilhoso.

Thiago Espeche, diretor de cena, criativo, roteirista e fundador da Chucky Jason

Leia texto anterior da seção "O Espaço é Seu", aqui.

O Espaço é Seu

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