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Um brasileiro em Singapura

Andrew, Patti Smith, Spotify e o pênalti perdido (por Erick Rosa)

13.12.16

O Andrew, a Patti Smith, a bolsa com presentes, o Spotify e o pênalti perdido

"Se as coisas fossem fáceis, a vida não teria graça". Uma frase que parece e é simplória. Mas acho que, na simplicidade da mesma, está a sua grande virtude.

Colégio Veiga de Almeida, Avenida das Américas, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Campeonato entre escolas do bairro. Mil novecentos e oitenta e sete. Eu, do quase alto dos meus doze anos, tinha sido eleito uma mistura de líder e um dos craques do time de futebol do meu condomínio, o Nova Ipanema. Final.

Aquele campeonato era a minha Copa do Mundo. Eu era o Zico, em 1986, contra a França de Jöel Bats e Platini. Pênalti. Último minuto do tempo regulamentar. Bola debaixo do braço, passos firmes, torcida com a respiração falha. Não sei se todos esses pontos finais serviram para algum efeito, mas a tensão era enorme. Ainda mais para uma criança de doze anos. Eu sentia nas costas o peso do mundo. Mas, muito mais importante, o peso do “Boi”, do “Digão”, do “Picolino”, do “Mala” e do técnico, o "Barril".

Isolei o pênalti.

A bola foi parar na Avenida das Américas. No imaginário popular e atualizado para dois mil e dezesseis é como se o Neymar chutasse a bola para fora do Maracanã e ela fosse quicar na Avenida Atlântica em Copacabana. Drama. Chorei copiosamente. Era o fim do mundo. Nada, nada mais fazia sentido. (Pouco) tempo depois o jogo acabou - o outro time ganhou nos acréscimos. E ali eu fiquei, no canto menos iluminado do campo, por quase trinta minutos. Depois de um tempo, meu pai se aproximou com uma certa cautela. Sentou-se do meu lado, fez um carinho e cedeu o peito. Silêncio, silêncio e disse: "Meu filho, está tudo bem, você jogou muito. Deu tudo de si. Olha, vou te dizer uma coisa. Preste atenção." Eu olhei para ele e ele disse: "Erick, se a vida fosse fácil, não teria nenhuma graça. Hoje não vai fazer qualquer sentido. Um dia eu tenho quase a certeza que vai." Me deu um beijo no meio da cabeça suada, ofereceu a mão e seguimos para casa sem dizer mais nada.

Eu cresci com pais separados, o que não diminui em nada o pai que ele é, muito pelo contrário. Foi e é pai do ano, todos os anos. Mas, como não convivíamos todas as 24 horas do dia, cada palavra que saía dele era como se o Obi Wan Kenobi falasse algo para o Luke. Eu buscava significado em cada letra, em cada cedilha. Bom, sempre lembro dessa frase quando qualquer coisa dá errado. E quando o jogo vira, quando o mundo dá a volta completa, eu lembro dela ainda mais.

Dentro de uma bolha do Facebook ou fora dela, dois mil e dezesseis foi tudo, menos fácil. Ao invés de listar aqui as coisas que fazem desse ano que tropega até o final - um ano difícil - vou apenas concluir como se fosse fato juramentado por todos os países do mapa-múndi que foi um ano que vai deixar tudo, menos saudades.

O que nos leva ao Andrew. O Andrew é um diretor de arte que trabalha comigo. Ele é algo difícil de explicar. A humildade dele é proporcional à qualidade do trabalho. E ele é uma das pessoas mais brilhantes que eu já conheci em toda a minha carreira. Ele é natural de Singapura. E esses dias me perguntou o que a minha família costumava fazer no Ano Novo Chinês. Eu disse que não tinha nada programado e que, para ser honesto, não entendia muito bem o significado. No dia seguinte ele deixou o seu endereço na minha mesa. Disse que ficaria honrado se a minha família fosse dividir a mesa com a dele nesta data.

Ontem, fuçando minha timeline, vi um vídeo da Patti Smith homenageando o Bob Dylan na entrega do Prêmio Nobel. Segundo verso da música e ela para. Nervosa, pede desculpas. O nervosismo é tanto que ela atropelou a quilométrica letra de “A hard rain’s a gonna fall.” Respira fundo, recomeça. Chorei, catei catarro com o guardanapo. Um tapa na cara de qualquer segunda-feira nublada. De gente que diz que o mundo já era, que as pessoas são o reflexo dos comentários de qualquer notícia na internet. Patti Smith homenageando Bob Dylan no Nobel é um tapa na cara de dois mil e dezesseis.

143. O ônibus que a Sanae, minha esposa, pegou com os gêmeos para uma festa esses dias. Fiquei em casa com o pequeno. Em minutos, ela ligou desesperada. A sacola com os presentes da aniversariante e os apetrechos para a piscina da dupla (a festa era na piscina do prédio) fora esquecida no ônibus. Entra no site, coloca código, digita isso e aquilo. E aquela sacola que contém a alegria desmedida de três crianças (os presentes da aniversariante e os óculos de mergulho dos meus gêmeos) foi encontrada e será devolvida com toda a alegria intocada.

O Spotify me enviou hoje a lista com as minhas músicas mais ouvidas do ano. Lá no meio está o tema de Star Wars, pois foi o ano em que os meus três pequenos descobriram a saga. Está também “In the Air Tonight” do Phil Collins, "Águas de Março" e "Can’t Stop this Feeling", a música mais feliz de todos os tempos — do filme Trolls — que está na lista pois o Francisco, meu filho mais novo, pede todos os dias para escutar e dançar.

Esse texto não tem a intenção de fazer o que o Facebook tem feito com aquele vídeo, empurrar goela abaixo que o ano foi perfeito. Não foi. Nenhum ano é. Mas acho, apenas acho, que no meio do Trump, Brexit, corrupção escancarada pela Lava Jato e por aí vai, tem um “I am Believer”, do The Monkees, que também apareceu hoje na minha lista das mais escutadas de 2016.

Pensei em escrever esse texto hoje quando recebi esse playlist do Spotify.

Aí eu me lembrei do Andrew e do convite que ele fez.

Lembrei da sacola cheia de alegria perdida que será devolvida por inteira.

Lembrei da Patti Smith.

Lembrei de mil novecentos e oitenta e sete. Do pênalti. Do meu pai. E de um fim do mundo que era apenas um começo.

Feliz 2017.

Erick Rosa, diretor executivo de criação da MullenLowe Singapura

Leia a coluna anterior de Rosa, aqui.

Um brasileiro em Singapura

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