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Leighton Gage. Adeus a um mentor (por Anselmo Ramos)
Leighton Gage foi muita coisa. Publicitário. Diretor de criação global. Jurado em Cannes. Cidadão do mundo. Romancista policial. Enciclopédia ambulante. Mas, para mim, acima de tudo, ele foi um mentor.
Conheci Leighton pela primeira vez em 1999 quando eu era um redator brasileiro tentando a sorte nos Estados Unidos.
Na época, ele tinha uma produtora chamada Shooting Stars. Eu fiquei imediatamente impressionado por esse gringo que tinha um português muito melhor que o meu inglês. Ele me deu uma cópia de um livro que tinha escrito em português, "O Filme Publicitário", leitura obrigatória para qualquer um interessado em aprender sobre o processo americano de produção.
Mantivemos contato. Até que aconteceu uma coisa que nos aproximou muito. Eu estava pronto para mudar para uma nova casa em Miami. Mas a casa não estava pronta pra mim. Então eu cancelei o contrato. Coloquei toda minha tralha no Public Storage. E encontrei o único hotel da cidade que aceitava gato e cachorro. Foi então que Leighton e sua esposa Eide fizeram uma coisa que nem os amigos mais próximos fazem: eles convidaram a Camila e eu para ficar na casa deles em Coconut Grove enquanto procurávamos outro lugar.
A gente falou não, óbvio. A gente falou esquece, temos um gato e um cachorro. Mas eles insistiram. A Alana, filha deles, ofereceu o quarto dela. E a gente acabou mudando para lá. Meu curso intensivo sobre a vida estava começando.
Leighton me adotou (ou pelo menos eu acho que sim). Não sei exatamente por quê. Talvez porque ele tivesse quatro filhas, mas nenhum filho. Talvez porque ele viu um pouco de si próprio em mim. O fato era, todo dia eu saía da agência num horário decente e ia para minha casa temporária. A gente abria uma garrafa de Barolo e ficava falando por horas.
Ele falava mais. E eu ouvia mais, e ficava embasbacado.
Ele sabia literalmente tudo. Produção de filmes. Segunda Guerra Mundial. Literatura inglesa. Cultura brasileira. Não precisava Googar, era só Gagear. Me lembro de uma noite em que estávamos falando sobre crianças. E ele perguntou se a gente estava pensando em ter filhos. Eu falei que não sabia, que tinha medo, que não estava pronto, todas as típicas desculpas masculinas. E aí ele me deu provavelmente o melhor argumento que já vi para alguém ter um filho: se você não tiver um filho, sua experiência nesse planeta não vai ser completa. Você deve ter um filho por razões puramente egoístas.
Ele me contava tudo sobre Joseph Conrad. Sobre como Conrad era originalmente polonês, mas tinha escolhido escrever em inglês, sua segunda língua. E como isso o tinha transformado num melhor escritor. E como eu deveria ler Almayers Folly para entender tudo isso.
O Leighton sempre me encorajou a escrever em inglês. Ele dizia que iria me deixar um melhor redator em português. Que me faria evitar trocadilhos e concentrar-me em insights universais. Terminei ficando lá dois meses menos do que a minha sede de conhecimento gostaria, e muito mais do que minha vergonha gostaria.
Finalmente achei um apartamento e deixei as incríveis histórias de Leighton e sua hospitalidade.
Quando nossa primeira filha, Helena, nasceu, Leighton veio nos visitar. Ele nos contou tudo sobre Helena de Tróia e citou de memória "To Helen", do Edgar Allan Poe. Eu falei que ele estava certo, tinha sido a experiência mais egoísta que eu já tive.
Muito tempo depois, a gente voltou a se encontrar em Cannes. E, na varanda do seu quarto no Sofitel, ele me olhou nos olhos e disse: "Anselmo, um dia você vai ser um diretor de criação, eu sei que vai, você tem o material para isso.
Ele sabia isso muito antes do que eu mesmo".
Quando contei pra ele sobre meu sonho de escrever roteiros de longa, ele disse que tudo o que precisava era disciplina. E me deu um livro: The Screenwriter's Guide do David Trottier. E aí ele me disse uma coisa que nunca mais vou esquecer. Ele disse que escritores têm que escrever. E que ele demorou muito para começar a escrever. Que ele só começou com mais de 60, depois de se aposentar da publicidade. E que ele não queria que eu cometesse o mesmo erro. Eu deveria começar a escrever imediatamente.
Leighton foi extremamente produtivo na sua curta carreira como romancista policial. Escreveu 6 livros, ainda sem tradução para o português: Blood Of The Wicked, Buried Strangers, Dying Gasp, Every Bitter Thing, A Vine In The Blood, Perfect Hatred. Tem um sétimo, The Ways of Evil Men, ainda não publicado.
São muito bem escritos, verdadeiros page-turners. Eu recomendo fortemente pra todo mundo. É o mais perto que jamais poderemos chegar da sua mente única.
Infelizmente, sua vida foi interrompida e nunca mais vamos ter novas aventuras do Inspetor Chefe Mario Silva.
Minhas condolências para sua esposa Eide e suas filhas Alana, Melina, Danielle e Stephanie. Se só dois meses com Leighton mudaram minha vida, não posso nem imaginar o efeito de passar uma vida inteira com ele.
Graças às suas palavras de encorajamento, estou no meu terceiro roteiro. Tenho escrito toda segunda à noite. É tudo uma questão de disciplina.
Onde quer que você esteja , Leighton, sei que você está escrevendo. Quero que você saiba que estou escrevendo também. Escritores precisam escrever, certo? E, by the way, escrevi este texto primeiro em inglês. Espero que tenha deixado você orgulhoso, meu mentor.
Anselmo Ramos
Artigo sobre ele no New York Times você confere aqui.