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Dois anos de Singapura (por Erick Rosa)
Dois anos de Singapura: O "Magic", a Nina e o aperto de mão que gasta, e o Mim e o "te amo" que não.
O indicador da mão direita corre pelo cardápio e no meio das opções de cafés, "Magic". Acima dele, o café tradicional, abaixo, o Latte. Mas ali no meio, descompromissado, sem bold nem asterisco, "Magic".
Um pouco de contexto. Estou num café em Singapura, perto da agência. Um café com um letreiro tímido bege claro sobre branco que não daria para ler do outro lado da rua. Escondido. Ou alguém te conta que existe um café ali, ou você literalmente esbarra nele. O que foi o meu caso.
Ao sair de uma produtora que fica ao lado -- alguém saía do café enquanto digitava no telefone ao mesmo tempo -- e quase me atropela. Acidente evitado, olho para o lado e lá estava o tal. Populus Café é o nome do lugar.
Mas voltando ao "Magic". Não existe uma placa lá fora que diz: "A casa do famoso café Magic!". Não está em primeiro lugar na lista. Veste uma fonte Arial como todos os outros itens do cardápio, tamanho 12, talvez 14. Olho para a moça atrás do balcão e pergunto: "Mas por que Magic?" Ela responde: "Magic como em magia, mágica." E importante, ela não disse isso fazendo graça como a clássica série da revista Mad "Respostas cretinas para perguntas idiotas." Respondeu com um tom humilde -- como se explicasse para o turista a origem literal do nome.
Eu insisti. Ela explicou: "Magic porque para o nosso barista—bom, ele acredita que esse café tem a proporção mágica de café, leite e espuma." "Proporção mágica?" "Sim, ele acha isso. Então colocamos esse nome." "E é bom?" "Sim." "Muito? Mágico? É o seu preferido?" "O Latte, meu preferido é o Latte. Mas o Magic também é bom."
Esses dias comemorei dois anos em e de Singapura. Esse café, o estabelecimento, assim como a bebida na sua versão "magic" me parece uma forma honesta de descrever a cidade da forma como a vejo e vivo depois de dois anos.
Sim, porque Singapura, apesar dos traços Blade Runner, uns cantos Epcot Center quando Epcot Center ainda previa o futuro e outros bons sustos arquitetônicos, é como o café. Não grita, não gosta de aparecer. É simples mesmo quando encontra a proporção mágica das coisas. E acho esse o lado mais interessante de se viver aqui. Não a perfeição ou a busca por ela, mas a falta do neon ao redor destas coisas. Do restaurante no mercadão sem letreiro, o bar que sem querer esconde seu melhor prato na última página até a magia do café sem fogos de artifício. O sujeito que o inventou achou a proporção dos ingredientes mágica e o quis chamar assim, e pronto. Um país pequenino com apenas cinquenta e um anos, sem recursos naturais. Cercado de bilhões de pessoas e potências. Impressiona. O cuidado, o carinho pelo próprio país, a atenção por todo e qualquer detalhe e a busca por fazer as coisas sempre mais interessantes. Mas nem por isso, sentir a tentação de cobrar 20 reais de valet parking porque pessoas decidiram que tal restaurante numa determinada esquina tem o melhor rámen da cidade.
Um ano atrás escrevi aqui um pouco sobre a cidade e as impressões após aquele primeiro ano (leia aqui). Após mais um ano achei que poderia ser interessante listar aqui outras tantas coisas sobre Singapura que fui descobrindo perambulando pelas ruas neste segundo ano. Como o meu indicador fez pelo cardápio do primeiro parágrafo.
Singapura é tão mas tão, (duas vezes) longe de qualquer coisa -- que ainda recebo muitos emails curiosos sobre esta cidade que é um estado e um país, tudo ao mesmo tempo. Então para efeito desse texto, fui anotando nos últimos dias uma quase lista de curiosidades da cidade. Essa lista se transformou nos pequenos quase curtos parágrafos que seguem.
Um dia vi uma menina sozinha, uniformizada passando pela frente da agência. Ela devia ter uns sete anos, talvez seis. Esperei por um adulto e nada. Mais alguns segundos, e nada. Ela estava calma. Não aparentava estar perdida. Perguntei para um amigo daqui e ele me disse que era comum -- ela memorizou o endereço da escola e pronto. "É comum, Erick”, disse ele, me convidando para "se despreocupar com a menina."
O inglês é a língua oficial. Mas não oficialmente fala-se de tudo. O português do meu filho, o Mim (Benjamim) é uma mutação estranha do original. Esses dias fui viajar e ele disse: "Pai, eu vou faltar você!" Como quem diz: "Dad, I will miss you." O Francisco, seu irmão mais novo, ainda se agarra com as últimas forças a um português mais correto e zomba do português do irmão mais velho todos os dias.
Álcool é caro. Para se ter em casa e não quebrar o orçamento logo se adquire o hábito de comprar no aeroporto no retorno de alguma viagem. Não é um segredo. Tem fila.
Por falar em aeroporto. Com o passaporte devidamente registrado, você entra e sai do país como se entrasse pela roleta do Cinemark com a rapidez de um filme na terceira semana em cartaz -- com uma simples leitura de código de barras e um polegar espetado num sensor.
Não existe banca de jornal. Das coisas que mais fazem falta. Ok, existe jornal. Mas ou você compra no 7 Eleven ou lê o que entregam na recepção do trabalho. Mas aí não tem aquela coisa toda do cheiro do café com papel do jornal. Não tem o Globo nem a tabela da disputada Taça Guanabara. Não existe padaria. É claro, você encontra lojas que vendem pães. Mas com o formato padaria de esquina, com o pão na chapa, o fera que pilota a chapa, o café coado no filtro de pano, enfim tudo isso, essa instituição brasileira, não existe. Sei que a mesma saudade se repete em outras cidades pelo mundo, mas se eu fosse criar um ranking com as coisas que mais apertam o peito, a banca e a padaria estariam pertíssimo do topo.
É quente, muito. Rio de Janeiro quente quando só tem mesa na varanda do restaurante. E naquele lugar na varanda onde o toldo não alcança. E isso é o ano todo. Mas acho, talvez baseado em um misto de otimismo com ciência, que depois de dois anos o corpo se aclimatou. E já é possível pescar uma camisa azul clara do armário ao sair de casa sem medo de ver a mesma se transformar em azul marinho minutos depois.
Existe um respeito enorme pelo espaço que é pouco. Mais uma cena com crianças que eu testemunhei e não fazia sentido. Certa vez ao voltar do almoço, vi um menino de uns dez anos com uma lata de cerveja amassada em uma das mãos. Lata parruda de 600 ml. Ele não cambaleava, andava certinho. E antes que eu comentasse algo, ele, o menino, jogou a lata no lixo. Ele obviamente não tinha o hábito de beber a caminho da escola. Simplesmente havia encontrado a lata que viu pelo caminho e a levou consigo até o lixo mais próximo. Hábito que já vi em mais de uma ocasião. Pessoas pegando pelo caminho lixo alheio e jogando ou guardando para o primeiro cesto que aparecer.
Sobre espaço. Quase 20% da área que hoje Singapura ocupa é de aterros. Ou seja, 1/5 do que antes era água hoje é terra. Com isso, as praias originais não existem mais. Mas existem algumas que foram criadas. Um pouco Piratas do Caribe da Disney de Orlando. Aquela coisa de pedras e areia estrategicamente colocadas no formato de praia. Mas sabendo que as originais deixaram de existir para o pessoal se espremer menos pela ilha, tudo se perdoa. Com isso, a piscina acaba por ser o local onde as pessoas geralmente ficam de molho para suportar o calor. Meus filhos saem da escola quase todos os dias direto para a piscina. E é comum encontrá-los enrugados apenas com os narizinhos de fora ao fim da tarde.
Cem milhões de galões de água do mar se transformam em água potável todos os dias em duas usinas de dessalinização. Estão construindo mais duas.
Trânsito é algo quase ensaiado. Show de Truman. Para todo e qualquer lugar é quase possível cronometrar com precisão o tempo que você passará dentro de um táxi. Pouco tempo, por sinal. Para quem nasceu no Rio e morava na Barra e estudava na Gávea e viveu em São Paulo e trabalhou na Berrini, o trânsito é quase inexistente. Quase duas, talvez três músicas de distância para qualquer lugar.
E voltando à gastronomia. Todos os lugares que frequento com a assiduidade de quem marca pontos invisíveis num programa de fidelidade com o país, descobri como encontrei o tal café mágico. Felizes acidentes. Sem querer, sem letreiro, sem gritaria ou fila na porta. O bar preferido é um que achei porque o da frente estava cheio naquele dia. Encontramos aqui um restaurante português pois um casal de amigos comentou. E ao seguir o mapa, notei que já havia passado na frente do mesmo por um ano inteiro sem nunca ter notado. O café da manhã que as crianças mais gostam fica quase escondido, e de longe não se vê se está aberto ou não pois fica embaixo de um telhado enorme que faz crescer uma sombra sobre ele. Quase tudo de mais interessante do país encontrei assim. Sem querer, querendo.
Como o "Magic". O café do título e do início deste texto. Eu tomei. Uma, duas, três vezes e nunca mais pedi. Não sei dizer a diferença com precisão. Mas é interessante. Ou é o efeito placebo da coisa toda. Mas o preço é o mesmo dos outros. Ninguém fala dele. Ele não se agarra a um asterisco. Mas tem qualquer coisa especial. Desde então passei a tomar o Latte que a moça do caixa disse preferir. Talvez para não entender o truque da mágica e perder a graça.
Sobre o Mim e a Nina do título. Eles são gêmeos. Mas são bem diferentes.
O Mim tem uma mania querida. Dispara "Paieuteamo!" todos os dias, o dia inteiro. Assim, sem espaços e com uma exclamação gorda. Um dia eu perguntei: "Mim, você entende o que isso significa? Não acha melhor dizer menos para não gastar?" E ele respondeu sem tirar os olhos do Lego que montava: “Eu gosto ué, amo. Por isso eu falo todos os dias. Quer ver, amanhã eu vou dizer de novo, aí você vai ver que não gastou.”
A Nina e eu temos uma brincadeira. Coisa simples, algo que fazemos desde que ela tinha quase dois anos. Quando estamos de mãos dadas eu aperto levemente duas vezes a mão dela. E ela, aperta a minha duas vezes de volta. Mas se eu sigo apertando ela diz: "Não faz muito pai, se repetir muitas vezes, gasta."
Dois anos de Singapura é uma mistura do Mim com a Nina. Os lugares, costumes e coisas que descobri -- alguns deles eu repito sempre. Como o bar favorito, alguns restaurantes e parques sem qualquer medo de gastar. Outros, como o café mágico, eu não repito -- para não gastar.
Dessa forma, dois anos ganham reticências e não ponto final. Como num passe de mágica.
Erick Rosa, diretor executivo de criação da Lowe & Partners Singapura
Leia a coluna anterior de Rosa aqui.
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