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A coleção de pedras do Francisco (Erick Rosa)
O Francisco, meu filho mais novo, coleciona pedras. Não pedras grandes, brilhantes ou com formatos diferentes. Pedras. Das que cabem no bolso diminuto das bermudas que ele herdou do irmão. E, de vez em tanto, quando não existe bolso, ele carrega do destino de origem até um cantinho do quarto dele sem muito alvoroço—apertadinha no vácuo da mão esquerda.
O P’quico (esse é o apelido do Francisco) nasceu em Lisboa, quase cresceu em São Paulo, e hoje continua quase crescendo em Singapura. Nunca tivemos essa conversa mais profunda sobre as pedras, mas acho que, para ele, elas são pequeninas peças de um quebra-cabeça que só ele sabe montar.
Tem pedrinha de uma viagem recente para visitar os avós em Hayama no Japão. Tem Natal e Ano Novo em Shanghai e Beijing. Tem Bali, Bangkok, Melbourne, Sydney. Mas, importante, as milhas não importam. A pedrinha do parque da frente de casa tem o mesmo valor, ou mais, do que uma pedra torta catada numa praia de quase impossível acesso na Tailândia.
Em busca de um assunto para mais um texto para este espaço, encontrei a inspiração nas pedrinhas do P’quico. Sim, esse quebra-cabeça pessoal, único e intransferível -- é de certa forma uma boa maneira de ilustrar o que é, para mim, viver fora do meu país de origem. É uma versão em reverso do “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança”. Neste caso, O P’quico, ao contrário do Jim Carrey, está tentando juntar pedacinhos de memórias para os anos que seguem.
Compreensível. Ele nasceu em Lisboa, mas já não tem memórias dos passeios pelo Jardim da Estrela, da Travessa de São Plácido, de tanta coisa que só Lisboa tem. De São Paulo, pouco fala, quase nada lembra. As fotos acendem um sorriso e ativam a covinha na bochecha, como se fossem as duas primeiras páginas de um livro sobre as memórias dos dois anos no Brasil, com as restantes em branco.
As pedrinhas começaram aqui. E não são cem. Dezoito talvez. Qualidade, não quantidade. Mas elas começaram desse lado do mundo. Uns três anos atrás ele chegou de um passeio, pedrinha. Uns meses depois, fomos a praia pela primeira vez, pedrinha. Um novo parque em que ele e o irmão inventaram uma brincadeira nova, pedrinha. Na falta de pedrinha, até uma lasca de galho de madeira já virou “pedrinha.” E assim foi. No cantinho do armário. O pequeno quebra-cabeças do pequeno Francisco ganhou forma. Certa vez, antes de dormir, ele levantou desesperado. “Pai, a minha pedrinha!” Quatro horas antes, no meio de um passeio, notei que ele estava com uma agarrada na mão e pedi para guardar para ele poder brincar. “Está na minha bolsa, não se preocupe. Boa noite.” Pedacinho de memória guardado, são e salvo. E um sono profundo do pequeno seguiu aquela certeza.
Na entrada de casa em Singapura, uma parede cresceu com dezenas de fotos, rótulos da embalagem de um doce japonês, polaroids de visitas e de improvisos, entradas de museu, selo de vinho, ímã de geladeira colado com fita dupla-face, coisas. Tudo improvisado. Mas basta um olhar para viajar pelos quase quatro anos que estamos aqui. No trabalho, são mais de mil fotos espalhadas pela parede. Talvez mais. Às vezes, chego de um almoço e colo o recibo no meio das fotos. Passagens, crachás. Post-its de reuniões de três anos atrás. Foto 3x4 de um passaporte vencido. Olhando para as pedrinhas do P’quico, vejo que eu também coleciono as minhas.
Recebo e-mails de pessoas que querem saber mais sobre a vida deste lado do mundo. Singapura, como já disse uma vez, é uma mistura de tudo. Religiões, etnias, sabores e aromas. A semana pode começar no Vietnam e terminar em Bangkok. O dia tem início com um cliente da África do Sul e termina com a família em um restaurante chinês com amigos indianos e de Singapura. Tudo isso com um fuso violento e uma saudade enorme da família e dos amigos que vivem do outro lado do mundo. Mas é incrível. Talvez por isso mesmo, como o meu pequeno P’quico faz, coleciono pedrinhas.
O Francisco, meu filho mais novo, coleciona pedacinhos de tempo.
Erick Rosa, diretor executivo de criação da MullenLowe Singapura
Leia o texto anterior do Erick, aqui.
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