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O cenário é pior do que se imaginava
Hollywood, ícone da indústria do entretenimento, está sendo varrida por uma onda de denúncias de assédio sexual que tem derrubado carreiras até então consideradas sólidas. Esse movimento gera questionamentos a respeito do que estaria acontecendo em outros setores econômicos. Cindy Gallop, ativista do empoderamento feminino no mercado de comunicação, publicou em seu perfil no Facebook um chamamento para que homens e mulheres que atuam em agências ou veículos trouxessem à tona os Harvey Weinstein da publicidade, referência ao poderoso produtor de cinema que foi demitido de sua própria empresa após uma avalanche de acusações.
Denunciar um caso de assédio, porém, é muito complexo. Cindy reconheceu que é preciso coragem para romper a barreira do silêncio. Frequentemente, as vítimas preferem se calar por sentirem que nada de concreto acontecerá ou por desconhecerem um canal para que sua história chegue a instâncias superiores ou mesmo por medo de retaliações. Com o assédio moral, os casos não são tão reportados quanto ocorrem por motivos semelhantes. Desse modo, muitos problemas acabam camuflados, dificultando a composição de um quadro que permita uma ação mais direta sobre esses assuntos.
Mas agora existem por aqui números que desvendam parte do problema na indústria de comunicação. Principal mercado da publicidade brasileira, São Paulo revela que o tema é mais grave do que se imaginava. Pesquisa encomendada pelo Grupo de Planejamento – e apresentada em sua conferência nesta quarta-feira, 15 –, mostra que os índices descobertos estão acima da média. O estudo “Hostilidade, silêncio e omissão: o retrato do assédio no mercado de comunicação de São Paulo”, realizado pela Qualibest, indica que 90% das mulheres e 76% dos homens já sofreram assédio moral ou sexual no trabalho. Um estudo similar, feito em 2015 pelo site vagas.com.br, revelou que 52% dos profissionais brasileiros passaram por isso.
Em relação ao assédio moral, 89% das mulheres e 85% dos homens julgam que o problema ocorre frequentemente no trabalho. No caso do assédio sexual, 67% das mulheres e 52% dos homens afirmam que isso é frequente. Um recorte mais específico sobre o segundo problema evidencia que as vítimas são essencialmente do sexo feminino. Das mulheres pesquisadas, 51% contam terem sofrido assédio sexual e 39% reportam que tiveram algum contato físico nessas situações – o percentual salta para 64% entre profissionais de criação. “De maneira geral, não achávamos que esses índices seriam tão altos. Como é o caso do contato físico”, afirma Ana Cortat, conselheira do Grupo de Planejamento (GP) envolvida com o estudo, junto com Ken Fujioka e Ulisses Zamboni e Renata d’Avila, presidente da entidade.
A ideia do estudo surgiu no ano passado, durante um evento que discutia assédio, após a pergunta de uma mulher da plateia a respeito do que era possível fazer. O GP começou a elaborar assim uma pesquisa para buscar informações reais sobre o assunto – muito se fala, entretanto, faltam dados mais profundos. Foi um trabalho delicado e complexo e que exigiu também o conhecimento da lei – conteúdo que era transmitido a todos que respondessem o questionário, que foi distribuído de forma online pelo mercado. Ao todo, foram 1.400 respondentes de São Paulo (68% mulheres e 32% homens, com média de idade de 33 anos), com coleta feita entre 10 e 30 de outubro. Participaram profissionais de agências, produtoras e veículos. Alguns depoimentos se tornaram base de um vídeo do Grupo de Planejamento sobre os resultados da pesquisa (veja abaixo).
Outros dados do estudo são:
- 83% dos diretores reportaram assédio e foram apontados por 63% da amostra como sendo assediadores;
- 18% dos respondentes foram assediados moralmente por clientes de nível hierárquico superior e 12% por clientes de nível hierárquico equivalente, demonstrando que os clientes formam parte do problema;
- 62% das mulheres e 51% dos homens afirmam ter sofrido problemas de saúde em função do assédio moral. As queixas delas vão de crise de choro (75%), males de ansiedade (72%), sentimento de inutilidade (68%) a depressão (45%). Entre eles, foram reportados sintomas de ansiedade (74%), sentimento de inutilidade (67%), abuso de bebida alcoólica (32%) e diminuição da libido (30%). Dos que responderam terem desenvolvido algum problema de saúde, 10% declararam ter tido pensamentos suicidas;
- apenas 12% das mulheres e 8% dos homens que se queixam de assédio moral procuraram o RH da empresa para fazer reportes. Quanto aos casos de assédio sexual, os índices de relatos oficiais são de 3% das mulheres e 7% dos homens. Somente 5% dos respondentes dizem que existe um canal direto para denúncias.
Próximos passos
Os responsáveis pelo estudo já fizeram contatos com outras entidades para que seja estabelecida uma agenda que enfrente esse quadro. O GP recebeu apoio da Abap (Associação Brasileira das Agências de Publicidade) e buscará envolver outros players do mercado como Grupo de Atendimento, Grupo de Mídia, Clube de Criação, Apro (Associação Brasileira da Produção de Obras Audiovisuais), Fenapro (Federação Nacional das Agências de Propaganda) e ABA (Associação Brasileira de Anunciantes). Um hackaton está sendo planejado para o início de 2018 com o objetivo de encontrar soluções concretas.
“Não queremos ficar discutindo culpa. Queremos trabalhar para dar passos para frente”, disse Renata d’Avila. Ana Cortat afirmou que é preciso alterar o sistema, criando-se, talvez, um processo mais efetivo para viabilizar denúncias e oferecer apoio a vítimas. Ou, como lembrou Ulisses, dando mais visibilidade aos canais que já existem. “Existe um funil de ineficiência. É minúsculo o número de reportes”, reforçou Ken.
Fundamental, como ressaltaram, é esclarecer, é informar não apenas a existência dos problemas como também mostrar que há a perpetuação de uma cultura da hostilidade, com a qual nos habituamos, como a submissão a prazos impossíveis, estabelecidos muitas vezes pelos clientes, fazendo piadinha com os colegas sobre mais uma noite virada. “Não é normal reproduzirmos violências. Não é normal não termos com quem falar sobre isso. O sistema precisa trabalhar para o fim da hostilidade”, pontuou Ana.
Para Renata, o passo dado pelo GP é um tanto ousado, até porque não existem trabalhos que escancarem o problema como ele é hoje no mercado de comunicação. E para enfrentá-lo há de soluções mais simples, como orientar os profissionais a respeito do que diz a lei, até ações bem mais desafiadoras, que visam transformar o ambiente. “Mas precisamos começar a trabalhar nisso”, salientou.
Lena Castellón
P.S.: Atualizado na quinta-feira 16 com vídeo.