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Um Brasileiro em Tóquio

Nagayama-san, Umeda-san, pausas, improvisos e sobrancelhas

30.08.19

Nagayama-san, Umeda-san, pausas, improvisos e sobrancelhas

Ao sorrir, dente. Dentes, Erick! Sorriso grande!

Era meu primeiro mês aqui em Tóquio. E essa primeira frase acima foi uma das melhores e mais importantes dicas que recebi. Quem me disse isso foi a Diretora do Departamento de traduções da agência, Nagayama-san. A explicação era simples: um sorriso grande, escancarado, não precisa de tradução. Significa que você está feliz com a ideia apresentada e não deixa muito espaço para segundas interpretações. E isso vale para quase tudo.

Um amigo americano que trabalha comigo me disse um dia que eu parecia o Mr. Bean ao me comunicar com o garçom em um restaurante. “Erick, é como se esse tempo no Japão fizesse com que você desenvolvesse uma nova língua. Uma mistura do sambar de sobrancelhas com um ping pong bossa nova invisível com as mãos-- seguido de um querido ‘arigatô’ ao final de cada frase.” E acho, modéstia à parte, que ele está certo. Japonês, japonês, para mim é impossível. Sei mais de três palavras, menos do que nove. Então todos os dias acrescento mais alguma habilidade não verbal à minha forma de me comunicar.

Achei interessante escrever esse primeiro texto do Japão falando sobre a língua e a minha completa inabilidade de falar a mesma. Como redator de origem e trabalhando numa profissão em que se comunicar com as pessoas é relativamente (muito) importante— esse poderia ser um bom primeiro capítulo sobre a vida em Tóquio.

Sem qualquer exagero, muitas vezes parece que estou num filme de ficção científica. Mas não desses de última geração, e sim aqueles bem doidos dos anos 70 que reprisavam em preto e branco em canais que já não existem mais. E tudo começa com a língua. A agência em que trabalho ocupa cinco andares de um prédio. O meu andar deve ter umas 80 pessoas. Destas, apenas três falam inglês. Num raio de quatro fileiras, apenas uma. E essa uma pessoa, exerce, entre tantas outras funções, a função de tradutora simultânea. E vale para tudo. Mensagem de texto, e-mail, post-it, feedback em pé no corredor, reunião maior. Sempre que eu preciso me comunicar, a incrível Umeda-san (esse é o nome dela) me ajuda. E eu confio cegamente. Lembra daquela cena clássica do “Lost in Translation” em que o Bill Murray fala dois quilômetros de texto e o tradutor traduz em uma só linha? Isso acontece todos os dias comigo. No começo é angustiante. Será que eles estão entendendo tudo tudo? E a intenção? O tom? Uma hora acostumei. Tudo muda. Tudo.

Vícios, estilos e maneiras de se comunicar que você desenvolve no decorrer da sua carreira não valem mais nada. Ou muito menos do que um dia valeram. Exemplo: pausas. Eu tenho o costume de pausar. Antes da piada de um roteiro. Antes de uma conclusão. No meio de uma história. Aquela pausa que você achava mágica—que pode selar a aprovação do roteiro da campanha da sua vida. Sempre abusei dessa pausa. Bom, aqui, ela, não, vale, nada. A pausa atrapalha a tradutora. Sempre que eu pauso—a tradutora leva um mini susto. Ela olha para mim como quem diz: "E aí? O que aconteceu? Por que você parou de falar?" Sabe aquele gesticular com as mãos que você usa para contar roteiros? Guarde eles com carinho numa gaveta. As pessoas agora vão prestar atenção na tradutora, não em você.

Improviso. Ah, o querido improviso que você costuma colocar em campo aos 47 do segundo tempo para tentar virar a derrota que parece já definida. O improviso agora entra capenga. Entra em campo já pedindo para sair. O problema é o seguinte: geralmente antes de qualquer reunião maior, a tradutora se reúne comigo. Desta forma ela tem um roteiro básico do que eu vou falar—e assim ela consegue fazer tudo de forma simultânea—quase sem precisar pensar (é impressionante.) Bom, para a tradutora, o meu improviso não é o atacante com as pernas frescas que pode marcar o gol no final, tirar a camisa e dar a volta no campo gritando “Chupa!!!!”. Não, o meu improviso é um torcedor que entra em campo pelado lambuzado de margarina e corre com a bola debaixo do braço. Ele, o improviso, não o torcedor lambuzado da nossa metáfora futebolística—vem do nada e atrapalha tudo.

Os exemplos se repetem em todo lado. Um dos criativos mais brilhantes e queridos da agência conversa comigo com um balançar de cabeça misturado com as já mencionadas sobrancelhas. Uma outra criativa conversa comigo apenas por e-mail. Ela escreve, google translate e send. Eu leio, google translate e reply. Detalhe: ela senta na minha frente. Tem um diretor de criação que só se comunica comigo por Gifs animados em um aplicativo japonês em que ele é o meu único contato. Um outro criativo fala comigo por mensagens de texto. Mas não qualquer mensagem de texto. As mensagens dele, eu nunca recebo do telefone dele—mas do telefone da tradutora.

Você deve estar pensando—mas isso deve ser um inferno. Não é. Sem querer enxergar o copo muito cheio e ignorar a complexidade da situação toda—tudo que eu descrevi acima – tem aquele efeito Girafa- frutos na árvore mais alta—pescoço mais longo—Darwin. Você precisa aprender a se comunicar. Ou reaprender-- depois de achar que já sabia. A antiga caixa de ferramentas já não serve mais. Você desenvolve outras e é gratificante. Eu, por exemplo, quando consigo sair de uma reunião com alguns sorrisos desenhados no rosto dos meus colegas de trabalho que não falam a minha língua—para mim, é Leão de titânio cravejado de rubis. Tudo aquilo que eu achava que sabia, não sei mais. Depois de tanto tempo aprendendo a apresentar, defender, criar, e defender mais uma vez-- em inglês-- e me achando um profissional todo ‘Linkedin plus bônus professional makers’—hoje aprendo tudo de novo. Do zero. Todos os dias.

Mas regressemos aos dentes e ao sorriso grande lá da primeira linha. Hoje tento seguir com precisão as dicas da grande e inigualável Nagayama-san. Jedi Master das traduções simultâneas. Exagero nos gestos. Mastigo as palavras como quem tenta descolar um caramelo daqueles dentões lá de trás da boca. E depois de mais de um ano aqui, acho, apenas acho, que o pessoal meio que me entende. As sobrancelhas minhocam cada vez melhor, e as tradutoras da agência já (quase) aprenderam a lidar com as minhas pausas e o improviso.

E isso nos leva ao sorriso. Que se no início era forçado para as pessoas entenderem a minha opinião durante uma apresentação, hoje é completamente natural. “Dentes. Dentes, Erick!

Erick Rosa, chief creative officer da Publicis One, em Tóquio

Leia a coluna anterior de Rosa, que anteriormente se chamava "Um Brasileiro em Singapura", quando ele respondia pelo cargo de diretor executivo de criação da MullenLowe Singapura, aqui.

Um Brasileiro em Tóquio

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