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Summer (Erick Rosa)
"Pai, esse ano foi, e para sempre será, o melhor ano para a Summer."
A Nina, minha filha, passou por mim enquanto o podcast da BBC anunciava (mais uma vez) o fim do mundo e soltou essa versão de 2020.
Busco a Summer pela sala e a encontro derretida no único espaço em que o sol desenha o chão pela manhã.
Pausa para explicar quem é a Summer.
Volto para o final do verão aqui em Tóquio.
A mesma Nina entra pela casa com uma gata, ainda pequenina no colo.
"Pai, pai! Adotamos uma gata. Paiê!"
Por alguns minutos a Summer foi "Outono", "Autumn".
Mas era verão. Ela é amarela-laranja. "Autumn" enrola a língua, então o nome mudou de estação -- e ela virou "Verão". "Summer".
Pausa para uma afirmação.
Um dia você ainda vai se apaixonar por um gato.
Tomo a liberdade de afirmar isso.
Não é regra regra. Mas é.
Volto para 2020 e o podcast da BBC.
Confesso que eu não conheço um só ser humano que consiga afirmar que 2020 foi ok.
Nem "mais ou menos."
Dois mil e vinte para todos os efeitos foi "menos e menos."
Não vou correr pelo óbvio.
Pelo presidente do Brasil que não é -- e o americano que ainda teima que é.
Esse foi o ano em que até mesmo o YouTube "skipou" o próprio YouTube.
Sim, o próprio postou um Jpeg meio sem vergonha avisando:
"Putz, não vai ter retrospectiva em 2020, belê?"
Imagina um negócio que foi criado e vive de minutos assistidos, views, likes e shares -- desistir do próprio negócio. Pois é, 2020.
Eu mesmo, e imagino que quem está agora lendo também, pulou uma série de convenções que antes eram quase leis da nossa sociedade pré-2020.
Exemplo: semana passada faltou leite em casa.
Sem pensar, sem qualquer comoção, coloco o gorro de lã para proteger do quase inverno, mergulho os pés nas havaianas e vou com a roupa que faz papel de pijama para a rua.
Só me ligo mesmo quando chego na loja de conveniência.
Pijama. Camisa ao contrário, bermuda que é uma calça de moletom frouxa cortada com a tesoura no joelho, havaianas, gorro de lã.
Por um, dois, talvez três segundos fico com vergonha.
Mas basta ver uma mulher vestida seguindo a mesma "tendência fim do mundo"-- segurando um saco de pães-- para eu me sentir em casa.
Leve balançar de cabeça como quem diz: "Estamos juntos." E segue 2020.
Dois mil e vinte relativiza tudo.
Recentemente, depois de uma reunião bem bem (duas vezes bem) importante de trabalho -- que não foi lá tão boa (veja como eu evito falar a palavra negativa para não dar mole para 2020), me viro para o atendimento com uma expressão de derrota Sarriá. E ele, sem pestanejar, diz: "2020 Erick, 2020."
Em casa eu costumo inventar sanduíches para as crianças.
Todos são chamados "Flavor Bomb Nº____".
Cada nova versão ganha o seu número.
Dia desses, uma das edições Flavor Bomb ficou terrível. Impossível de mastigar.
O Francisco, meu filho mais novo, deitou o sanduíche como quem mastigasse uma mão de pistaches com casca e disse: "2020. Flavor Bomb 2020!"
Termino com a Summer da primeira linha.
Não vou ousar dizer que ela, uma gata, desfaz o impacto de 2020 sozinha.
Prometo que não. Sob o risco de amaldiçoar 2021, eu sei.
Mas sim, a Nina tem toda a razão -- para a Summer, foi um ano incrível.
O melhor ano de todo o sempre.
De três gatos de uma mesma família, a última no abrigo.
Dez minutos antes de fechar.
Numa visita decidida no trânsito. Improvisada.
No último dia de um abrigo itinerante.
Uma gata que começou com o nome de Outono e virou Verão.
De todo o ruim, péssimo e desesperador que 2020 teve, uma coisa incrível tem--
A Nina encontrou a Summer.
A Summer encontrou a Nina.
(Que seu 2021 seja como o 2020 da Summer.)
Erick Rosa, chief creative officer do Publicis Group, em Tóquio
Leia coluna anterior deste mesmo autor aqui.