arrow_backVoltar

Um Brasileiro em Tóquio

O homem que lixa o gelo no bar e outros casos (Erick Rosa)

14.12.22

Pernil, Véio, Cabelinho, o homem que lixa o gelo no bar, a tatuagem no braço da atendente no Aeroporto de Nice...

O título é longo, mas prometo que vai fazer sentido.
E não necessariamente na ordem acima.

Começo pelo final.
[Bem] Atrasado, chego ao Aeroporto de Nice com a quase certeza de que seria penalizado por ter optado por mais uma saideira horas antes.
Entrego o passaporte, sorrio, bocejo e sorrio.

A senhora, que estás atrás do balcão, olha para o relógio no próprio pulso, espia o relógio preso ao teto acima de nós dois para confirmar, respira fundo - e quando ameaça dizer algo com um tom mais duro - olha para o meu passaporte uma segunda vez e abre um quase invisível sorriso.

Leve balançar da cabeça e pede para que eu me aproxime do balcão.
Sua mão direita alcança a manga do seu braço esquerdo.
Enrola, enrola e ela aponta uma tatuagem no antebraço em letras cursivas: “Erick
Ela emenda: "É raro, com 'C' e 'K', conheço tão poucos. É o nome do meu filho mais velho.
Ela então cutuca os teclados do computador, espreme os olhos para ler as entrelinhas - e abre um sorriso como se revelasse para mim algo que o sistema acabara de sussurar para ela:
Erick com CK, corre que ainda tem tempo!
Carimbo, carimbo, máquina cospe a passagem e eu corro. Bambo, mas corro.
Não perco o voo e ganho um querido parágrafo para um futuro texto.

O homem que lixa o gelo no bar.
Track Bar, Ebisu, Tóquio.
Algumas regras precisas, provavelmente [com certeza] uma das melhores trilhas sonoras da cidade e drinks que rendem parágrafos inteiros como esse.
Sobre as regras: é proibido falar [e conversar] alto, usar o telefone [em todas as suas versões] e você será educadamente convidado a sair se insistir em fotografar.

Volto para o homem [bartender] que lixa o gelo.
Sem correr o risco de diminuir o que é feito atrás daquele balcão, descrevo desta forma para ajudar a ilustrar algo que estou proibido de fotografar.
A cena: do lado de lá, três bartenders, mais de mil LPs, duas enormes caixas de som, dessas que você vê em fotos do palco do Woodstock original e, é claro, centenas de garrafas.
Mas o que chama a atenção, sempre, é o bartender, ao centro, que passa a noite lixando e cortando blocos de gelo com uma faca titanium milenar monte Fuji sétima geração.
Não é de vez em quando, é sempre.
E não é apenas para o cocktail mais caro.
O mesmo gelo lixado milimetricamente é usado no copo d’água da pia [grátis].
Sem querer transformar o homem que lixa o gelo no bar em um ‘texto pesca-like-coaching’ do LinkedIn.
Mas, olha, se tem uma cena numa noite de Tóquio que sempre me pega é esse esmero com algo tão básico como gelo.
Certa vez, quando pedi um segundo drink do mesmo, com o iceberg ainda quase intacto, conversei com a ponta do nariz, implorando para ele reutilizar aquela obra de arte.
Negativo, gelo novo.

Mais uma regra: não pode pedir música para tocar.
Mas, como tudo Japão, em mais de uma ocasião, ao me verem entrar pelo bar, logo toca Antônio Carlos Jobim e João Gilberto. Gentileza pura.
Sempre seguido de uma troca de olhares como quem diz “Arigatô” e pede mais um drink.
Talvez [com certeza] o que mais impressiona não é apenas e somente o carinho com algo que, em milhares de lugares, vem em ultimo lugar.

É que, numa cidade desse tamanho, com esse ritmo contínuo, com tanta gente, em um dos maiores bairros da cidade, existe uma pessoa que dedica a maior parte das suas noites na busca constante pelo gelo perfeito.

Pernil, Véio, Cabelinho, Mané.
Marco Gianelli, Renato Lopes, Alessandro Bernardo, Eu.

Esse ano, nós quatro dividimos uma mesa em Cascais e mais uma, na casa do próprio Renato.
Dividimos toalhas de praia, conta de bar, histórias, tardes, noites.
Entre a primeira vez que os quatro dividiram um mesão em São Paulo e aquele reencontro, 22 anos.
Sou o primeiro a levantar a mão e afirmar que a pandemia criou em mim uma nostalgia crônica. Sinto saudade de tudo, todos e de vez em tanto com a voz embargada, falo e escrevo para as pessoas com os emojis mais coraçãozudos que existem.

Entre Papa-Figos e Super Bocks, em algum momento, naquele tempo suspenso que transportou a Avenida Berrini e a Torre Norte para uma praia em Cascais, cheguei a conclusão simples que a melhor ideia que eu já tive em toda a minha carreira foi ter amigos como eles.
Faço um paralelo quase simplório [e óbvio] com uma ficha técnica.
E penso como é bom enxergar com a distância que o tempo permite a sorte que é ter, na ficha técnica da sua vida, melhores e amigos bons.
Para aquelas ideias que são intergalácticas e mudam o mundo, inventaram o Titanium Lions.
Para uma ficha técnica com amigos de uma vida inteira, uma mesa no querido Restaurante Terroso em Cascais.

Comecei esse texto na volta de Cannes para Tóquio.
Comecei, parei.
Hoje, ali, no meio do desktop com um ano inteiro de arquivos, enxerguei o ícone do ‘word’ com o nome ‘Pernil’, reabri. Terminei.

Uma breve manhã no Aeroporto de Nice, a noite num balcão de Tóquio, a Berrini em Portugal.
Tudo sem qualquer conexão.
Ou não.
Tudo está conectado, por linhas tortas e sem tamanho.
Generosas doses de momentos que agora, no final do ano, apesar de tudo, olhando para trás, desenham um sorriso no rosto deste que aqui escreve.

Que o seu 2023 seja uma combinação quase parecida e nada óbvia.
De farta gentileza, curiosidade e saudade [devidamente saciada].

Erick Rosa, chief creative officer do Publicis Group, em Tóquio

Leia texto anterior deste mesmo autor, aqui.

Um Brasileiro em Tóquio

/