arrow_backVoltar

CCXP 2019

Reflexões, destaques e números do maior festival de cultura pop do mundo

09.12.19

De propriedade intelectual aos dilemas da cultura no Brasil, do valor da série e do artista como marca ao protagonismo das mulheres. Pode-se dizer que esses foram alguns temas que se destacaram na CCXP 2019, que se encerrou neste domingo (08) após uma maratona aberta na quinta-feira (05). Parte deles surgiu em painéis organizados no Unlock CCXP, evento que, de terça a quarta, discutiu os rumos da indústria do entretenimento.

A CCXP 2019, que bateu mais uma vez recorde de público, com 280 mil ingressos vendidos, consolidou sua posição como maior evento do mundo dedicado ao universo geek e à cultura pop. Mas o festival conquistou neste ano um destaque que ainda não havia registrado em suas cinco edições anteriores. Apesar de já trazer premiéres e conteúdo exclusivo para o público em suas sessões, desta vez foi feito o lançamento global de um trailer, com transmissão ao vivo pelo Twitter: isso aconteceu no painel da Warner dedicado ao filme “Mulher-Maravilha 1984” (confira o tweet aqui).

A atriz israelense Gal Gadot esteve no palco principal junto com a diretora Patty Jenkins para exibir o vídeo. O ator Chris Pine, cujo personagem retorna à história em circunstâncias ainda não esclarecidas, participou da estréia à distância, via Twitter. O público que lotou a sala teve direito a cenas extras. Esse foi um dos grandes momentos da CCXP 2019.

O festival teve outros painéis que agitaram o público e renderam comentários nas redes sociais. Veja alguns dos temas que foram abordados, destaques do evento, pontos positivos e outros que merecem atenção para as próximas edições.

Propriedade intelectual

Um dos assuntos que esteve presente em variados painéis foi a propriedade intelectual. Como disse Tereza Gonzalez, diretora sênior da Viacom International Studios, há uma gama de novos parceiros para um criador de conteúdo. Uma obra pode nascer como um produto e se desdobrar em outros: de uma HQ a uma série dentro de uma plataforma de streaming. “Uma questão importante é o desapego da IP, da propriedade intelectual”, ponderou Tereza em um painel do Unlock, referindo-se à sigla do conceito, em inglês, comumente usada no mercado.

Com mais possibilidades de expansão de um conteúdo, surgiram mudanças no modelo de negócio. A partir da negociação, o autor deixa de ser dono único da obra. Ela pode ser adaptada por uma produtora e parar em diferentes formatos, da TV aberta ao streaming. “O pulo do gato é ver o que fica para você. Se você tem algo poderoso e quiser vender para a Amazon ou para outra companhia, você tem de verificar com qual pedacinho ficará. Tudo depende da negociação”, esclareceu Tereza, que lembrou que o Porta dos Fundos não fecha acordos de exclusividade, podendo ter conteúdo no YouTube, na HBO, na Netflix ou em outro player.

O próprio YouTube abriu mais uma oportunidade para quem cria. Em outubro, a plataforma passou a oferecer ao público do Brasil o YouTube Originals, que são produções planejadas e executadas com apoio da empresa. A estreia se deu com “Whindersson Nunes - Próxima Parada”. Estão na programação mais cinco produções (leia mais aqui), entre elas o reality “O Novo Futuro Ex-Ator do Porta”, que buscará um integrante para o grupo (a seleção provavelmente começará em março). Tudo gratuitamente.

Em outro painel do Unlock, exatamente sobre “Propriedade Intelectual”, o quadrinista Gabriel Bá afirmou que o criador precisa saber “o tamanho de sua perna”. Ele contou ter resistido a diversas propostas até “The Umbrella Academy”, sobre heróis, escrita por Gerard Way (da banda My Chemical Romance) e ilustrada pelo brasileiro, ser transformada em série (disponível na Netflix). Ele defendeu que é necessário valorizar o que a artista tem de mais precioso. “Não se trata só de pagar contas. A gente tem de fazer um esforço para fazer com que os quadrinhos nos levem para onde queremos ir. Decidi pegar menos projetos, mas pegar os certos”.

Segundo Gabriel, a história é um gênero pop, mas que se beneficia do fato de os personagens terem problemas. “É uma maneira diferente de falar sobre heróis”. A HQ foi premiada e atraiu o interesse da Universal, que encampou o projeto. “Dez anos atrás, a série não era essa oportunidade que existe hoje. Filme era mais atrativo. Mas eu não queria saber de filme”, lembrou.

Cinco anos depois, afirmou, veio a onda das séries. Porém ele ainda não se interessava pelo assunto. Foi quando a Universal procurou pelos autores e envolveu a Netflix na negociação. “Aí, tive de aprender sobre propriedade intelectual e sobre como se ganha com série de TV, sobre quem é pago e sobre meu papel. Aprendi com o bonde andando”. Gabriel resolveu que seria produtor executivo e agora, com a segunda temporada, sente que compreendeu seu papel.

CEO da Redibra, David Diesendruck observou, no mesmo painel, que deve-se pensar na IP como extensão de marca. “As oportunidades são inúmeras e elas crescem”, emendou o executivo da empresa, que tem a “Galinha Pintadinha” no portfólio. Por isso, é essencial que o criador não entregue a propriedade intelectual inteira para um terceiro.

Gabriel declarou ao Clubeonline que boa parte do trabalho de entender os alcances de “The Umbrella Academy” fica com a editora Dark Horse Comics (dos EUA). “Entendo tudo de quadrinhos. Mas não do setor de audiovisual”, justificou. O quadrinista não tem interesse em procurar outras janelas para suas criações. “Existe demanda para fazer mais coisas. Mas só a série me toma muita atenção. E eu quero fazer quadrinhos. Esse é um novo universo para todo mundo. Se pintar algo, vejo”, completou.

Protagonismo feminino

A CCXP colocou as mulheres em evidência. Muitos de seus painéis no auditório principal tiveram atrizes, diretoras e produtoras explicando mais das novidades dos estúdios. A Warner, nesse sentido, foi um dos grandes destaques. No primeiro dia do evento levou Margot Robbie para falar de “Aves de Rapina - Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa". Junto com ela, estiveram suas companheiras de cena Rosie Perez, Ella Jay Basco, Jurnee Smollett-Bell e Mary Elizabeth Winstead, além da diretora Cathy Yan.

Ovacionada pelo público, Margot disse que o longa é feminista, mas defendeu que feminismo não é assunto só para mulheres. Ela convocou os homens a também participar da luta por mais igualdade de gênero.

Tom semelhante foi ouvido no painel com Gal Gadot, que afirmou que “Mulher-Maravilha 1984” é o maior filme de que já participou. Patty Jenkins declarou que o filme é para todos, mas que uma das mensagens é que qualquer mulher pode ser Mulher-Maravilha. Sobre a personagem em si, Patty explicou que ela é poderosa, mas gentil. "Tem carinho pelas pessoas. É uma heroína do futuro”, acrescentou.

E heroína do presente, vide a explosão de aplausos que recebeu Gal Gadot ao surgir no auditório, já agitado por braceletes que emitiam luzes coloridas entregues pela Warner e antecedida por um cortejo de cosplayers de Mulher-Maravilha.

No painel da Netflix, outra recepção extremamente calorosa foi para Alba Flores, que faz o papel de Náirobi, em “La Casa de Papel”. Parte do elenco subiu ao palco depois que uma leva de pessoas vestidas com macacões vermelhos e com as máscaras dos personagens tomaram o espaço. Uma das falas de Náirobi foi exibida em um vídeo, provocando gritos: “O matriarcado começou”.

Para Alba, parte do sucesso de Náirobi se explica porque ela representa uma classe menos favorecida. Além disso, ela demonstra se entregar totalmente a uma comunidade, o que é admirável. Pedro Alonso, que faz Berlim, declarou que o sucesso é perfeitamente entendido porque a personagem tem coração.

Cultura e política

Diversos discursos foram feitos em nome da cultura. Nos dois painéis reservados para as séries da Globoplay, houve falas que demonstraram a preocupação dos artistas com a produção cultural. Em alguns momentos houve comentários mais críticos, sinalizando que é importante valorizar os investimentos na área e a liberdade de expressão artística.

Vivemos uma crise econômica, política e ética”, afirmou o diretor Cao Hamburger, o homenageado desta edição da CCXP. Cenário que pode ser visto em outros países. Durante o painel de homenagem aos 80 anos do personagem Batman, o desenhista Neal Adams pediu ao público desculpas por seu país ser governado por Donald Trump, o que arrancou aplausos do público. O gaúcho Rafael Grampá, mais um desenhista de Batman, respondeu que os brasileiros também têm motivos para pedir desculpas.

Frank Miller, igualmente famoso por desenhar Batman, comentou, em outra sessão dedicada ao super-herói da DC, ter ouvido a respeito de HQs censuradas no Brasil, referindo-se ao episódio em que o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, mandou retirar da Bienal do Livro um livro dos Vingadores que apresenta dois personagens homossexuais se beijando. Miller comentou que a política sempre fez parte do Cavaleiro das Trevas.

Em uma masterclass, a quadrinista Laerte, que esteve no palco junto com seu filho, o desenhista Rafael Coutinho, salientou a importância de se criar uma frente contra o fascismo que se manifesta em variados campos. Rafael defendeu que qualquer produção artística é um ato político e disse acreditar na força da mudança dada pela arte.

Séries e artistas como marcas

A maratona proporcionada pela CCXP deixa muito evidente como certas séries e artistas se sobressaem como marcas poderosas. Mulher-Maravilha é uma delas. E Gal Gadot também. Batman, que completou 80 anos, é mais uma marca que se mantém forte: havia uma multidão de cosplayers de todas as idades vestidos assim pelo festival e fãs se agruparam em torno de Neal Adams e Frank Miller, além de Grampá, que está trabalhando em um projeto com Miller. Por sinal, o personagem Coringa interpretado por Joaquin Phoenix foi objeto de diversos cosplayers.

La Casa de Papel” confirmou ser uma série extremamente popular por aqui. “Friends”, “Game of Thrones”, “Breaking Bad”, Vingadores, Harry Potter e outras produções que já se encerraram provocaram filas entre cenários e ativações proporcionadas pelas empresas em seus estandes.

Outro exemplo máximo da força de uma marca foi o dia da Disney no auditório Cinemark. O sábado começou com a exibição, em primeira mão, de “Frozen 2” (em cartaz a partir de 2 de janeiro) e terminou com o painel focado em Star Wars - com a presença do diretor J.J. Abrams e parte do elenco principal do novo longa, com John Boyega, Oscar Isaac e Daisy Ridley. Vale lembrar que antes houve uma sessão com o presidente da Marvel Studios, Kevin Feige.

Mas, de fato, o sábado teve “início” logo no primeiro dia da CCXP, com fãs fazendo filas já na quinta para garantir um lugar na sala. Por volta das 2h do sábado, a organização avisou pelas redes que o espaço estava totalmente ocupado e não havia a menor chance de alguém conseguir um assento.

Consumo: marcas faturam, mas ar de shopping incomoda

A CCXP divulgou alguns números desta edição. O festival ocupou um espaço de 115 mil m² com ativações de 15 estúdios e plataformas de streaming, 35 lojas (entre elas algumas bem especializadas em produtos de temática geek) e 55 marcas.

Na praça de alimentação, havia 42 restaurantes e outras opções de alimentação, como o espaço da Nissin, que ofereceu um produto novo, de sabor curry. Os produtos mais consumidos foram hambúrguer e refrigerante, sendo esta considerada a maior venda de refrigerante em eventos indoor em São Paulo.

Os organizadores estimam que as marcas obtiveram faturamento de R$ 52 milhões. Outro cálculo da CCXP: quem esteve no evento gastou, em média, R$ 325.

A esse respeito vale uma observação importante. Na masterclass em que falou de política e quadrinhos, Laerte chamou atenção para o lado de compras do evento, transmitindo certo incômodo com esse quadro. “Quando olho a CCXP, lembro da Fenit, de grandes feiras comerciais que congregavam associações”, afirmou, fazendo menção à profusão de pessoas circulando pelos espaços atrás de produtos. Discussões sobre quadrinhos ele estava mais acostumado a ver em eventos como o Salão de Humor de Piracicaba.

Rafael Coutinho ponderou que artistas precisam vender e, por isso, elogiou a manutenção do Artists Alley’s no coração do espaço de exposição. Essa área é reservada aos quadrinistas e ilustradores.

De todo modo, as longas filas em torno das lojas instaladas no espaço têm dado um ar de shopping ao evento. E shopping às vésperas do Natal. Está claro que é válido vender produtos ao público geek ávido por ter peças ligadas a seu objeto de devoção. Mas a observação de Laerte é pertinente, visto que até para andar pelos corredores era difícil não esbarrar ou tropeçar em sacolas e malas carregadas de produtos.

Problemas de quem é grande

Um problema associado ao crescimento da CCXP tem a ver com a organização dos espaços para atender tanta gente. Neste ano, quando se saía do auditório Cinemark, o público era levado para o lado externo. Com essa mudança, quem desejasse voltar à CCXP tinha de passar mais uma vez pelas entradas e pelo controle de crachás. O desvio implicava em tempo perdido para que o visitante retornasse para os espaços do festival.

Mas houve outro, que gerou críticas nas redes sociais. Quem frequenta o festival, sabe que as filas para os painéis mais concorridos são gigantescas. Chegar cedo nem sempre garante a entrada na sala. Tanto que parte do público passou a enfrentar a madrugada para poder assegurar seu acesso às sessões. Os organizadores não são responsáveis pela formação dessas filas, porém cabe ao festival pensar estratégias de lidar com essa questão.

A fila para o acesso ao auditório principal no sábado virou tema de comentários nas redes. Havia fãs que se queixavam de a organização ter distribuído pulseiras na própria sexta, em vez do sábado. Outros reclamaram que a lotação plena já era sabida pelo staff desde a noite de sexta e que o fato só foi oficializado pela madrugada. Mesmo quem pagou pelos ingressos mais caros, com direito à entrada mais cedo, não teve chance de ver os primeiros painéis do sábado.

Lena Castellón

CCXP 2019

/