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Coluna do W.O.

Why not?

13.10.21

Ouvi Caetano Veloso cantando a caleidoscópica “Anjos tronchos”, na primeira quinzena de setembro.

Uns anjos tronchos do Vale do Silício / Desses que vivem no escuro em plena luz / Disseram: vai ser virtuoso no vício / Das telas dos azuis mais do que azuis / Agora a minha história é um denso algoritmo / Que vende venda a vendedores reais / Neurônios meus ganharam novo outro ritmo / E mais e mais e mais e mais e mais / Primavera Árabe / E logo o horror / Querer que o mundo acabe-se / Sombras do amor / Palhaços líderes brotaram macabros / No império e nos seus vastos quintais / Ao que revêm impérios já milenares / Munidos de controles totais / Anjos já mi ou bi ou trilionários / Comandam só seus mi, bi, trilhões / E nós, quando não somos otários / Ouvimos Schoenberg, Webern, Cage, canções / Ah, morena bela / Estás aqui / Sem pele, tela a tela / Estamos aí / Um post vil poderá matar / Que é que pode ser salvação? / Que nuvem, se nem espaço há / Nem tempo, nem sim nem não / Sim: nem não / Mas há poemas como jamais / Ou como algum poeta sonhou / Nos tempos em que havia tempos atrás / E eu vou, por que não? / Eu vou, por que não? / Eu vou / Uns anjos tronchos do Vale do Silício / Tocaram fundo o minimíssimo grão / E enquanto nós nos perguntamos do início / Miss Eilish faz tudo no quarto com o irmão.

Ouvindo Caetano cantar “Anjos tronchos”, em 2021, tive a mesma sensação de quando o ouvi cantar “Baby”, em 1968.

Você precisa saber da piscina / Da margarina, da Carolina, da gasolina / Você precisa saber de mim / Baby, baby, eu sei que é assim / Baby, baby, eu sei que é assim / Você precisa tomar um sorvete na lanchonete / Andar com a gente, me ver de perto / Ouvir aquela canção do Roberto / Baby, baby, há quanto tempo /Baby, baby, há quanto tempo / Você precisa aprender inglês / Precisa aprender o que eu sei / E o que eu não sei mais / E o que eu não sei mais / Não sei, comigo vai tudo azul / Contigo vai tudo em paz / Vivemos na melhor cidade / Da América do Sul, da América do Sul / Você precisa, você precisa / Você precisa / Não sei, leia na minha camisa / Baby, baby, I love you / Baby, baby, I love you / Baby, baby, I love You.

Depois da primeira audição de “Anjos tronchos” e da lembrança da gravação de “Baby”, assisti ao ministro da Saúde do Brasil mostrando seu obsceno dedo médio para manifestantes contrários à presença da comitiva de políticos brasileiros em Nova York. Curiosamente, no dia seguinte em que cometeu o tal gesto, esse ministro foi diagnosticado com Covid-19.

Na mesma hora, relembrei Caetano cantando “É proibido proibir”, canção composta há 53 anos, que continua contemporânea, nessa sociedade que acredita na ideia de jerico de que o ódio provoca mais engajamento que o amor.

Lembrei-me de “É proibido proibir”, como podia ter lembrado de “Gente”, “Odara”, “Podres poderes” ou “Fora da ordem”.

Falando em “ïnternetês” claro: “Anjos tronchos” é uma canção que mistura Jeff Bezos com Carlos Drummond de Andrade, os horrores da revolução digital com suas maravilhas, bestas mitificadas com jovens criativos trancados nos seus quartos.

Não acho que vá estourar na Vila da Penha, mas não tenho dúvida de que é a mais perfeita tradução dos dias que estamos vivendo, escrita por um artista brasileiro que jamais deixou de se perguntar por que não.

Washington Olivetto
Publicitário

washington@washingtonolivetto.com.br

Texto publicado no jornal O Globo

Leia texto anterior da Coluna do W.O., aqui.

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