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Criado-mudo

'Durmo rente ao carpete. Rodeado de livros'

18.08.06

Meu criado-mudo fica no chão. Digo assim: cabeceira abaixo. Explico: não tenho cama. Tenho um colchão, largado. Durmo rente ao carpete. Rodeado de livros. Meu criado-mudo é letrado. Largados estão ali os clássicos que sempre estou lendo/relendo. Você encontra, por exemplo, vários volumes do argentino Julio Cortázar. Os romances do português Vergílio Ferreira. Sempre à mão, os contos do Machado. Sem contar os novos autores. Companheiros contemporâneos. Todo dia chega uma penca. Em meu endereço. Gosto de acompanhar tudo. Antes de dormir, folheio. Anoto. Também há um caderno meu chamado "Quarto da Bagaceira". Onde rascunho umas frases para usar depois. Quem sabe? Em um conto, em um microconto. Crio narrativas curtas, a saber: "Enforcado na corda bamba". Ou: "Mataram o salva-vidas". E por aí vai. Tudo ao som de Bola de Nieve, Ella Fitzgerald. Ao som de Edith Piaf. É isso. Logo no meu lado esquerdo, à altura do peito, uma pilha de CDs. Trilha sonora para adormecer. Gosto de cantora assim, dor-de-cotovelo. Maysa e Chavela Vargas. Gosto, idem, de novatas como a paulistana Fabiana Cozza. Intérprete primorosa. Costumo dizer: durmo em uma toca. Ao redor do colchão, meu inventário de sombras. Há também fotos da família. E pinturas. E miniaturas. É ali onde eu conforto o meu juízo. Amanheço o meu espírito. Para a luta. Viver até parece que não assusta. Ah! Também conto carneirinhos na madruga.
 
Marcelino Freire é escritor. Autor, entre outros, de "Contos Negreiros" (Editora Record), vencedor do Prêmio Jabuti deste ano na categoria Melhor Livro de Contos. Atualmente, trabalha como revisor na JWT

Criado-mudo

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