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Antídoto passa pelo jornalismo de qualidade. É o suficiente?
A indústria da mídia, sobretudo os jornais, e a sociedade, especialmente o mercado europeu, têm intensificado uma discussão em torno das responsabilidades das plataformas tecnológicas que tanto vêm transformando a vida das pessoas ao redor do mundo. Uma das questões é a proliferação das chamadas fake news, notícias infundadas que se espalham pelas redes sociais e pelas aplicações de mensagens instantâneas. O tema foi objeto da primeira mesa de debates do 2º Encontro Folha de Jornalismo, que marca os 97 anos do jornal Folha de S. Paulo. O evento acontece até esta terça-feira, 20.
Batizado de “Jornalismo como antídoto às fake news”, o painel aconteceu nesta segunda, 19, dias depois de a Folha ter tomado uma medida que repercutiu na imprensa mundial: sua decisão de deixar de postar conteúdo no Facebook (leia mais aqui e aqui). A propagação de fake news, sem que a empresa tenha conseguido resolver o problema “satisfatoriamente”, como alegou o jornal, foi um dos motivos para que o veículo parasse de distribuir suas reportagens pela plataforma.
A esse respeito, Sérgio Dávila, editor-executivo da Folha de S. Paulo, contou que a medida segue algo que Otávio Frias Filho, diretor de redação da Folha e diretor editorial do Grupo Folha, chama de “aldeia de Asterix”, espécie de foco de resistência. O jornalista acrescentou que “é preciso coragem para fazer jornalismo de qualidade”.
Convidado a fazer a palestra de abertura do encontro, o jornalista brasileiro Rosental Calmon Alves, professor da Universidade do Texas e diretor do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, disse que, em sua carreira, acabou por se tornar um evangelizador digital. Em 1999, já dizia que a web não era apenas mais um meio de comunicação e sim era a ponta de iceberg de um processo transformador. De fato, a revolução digital demandou mais do que adaptação da mídia tradicional. A indústria precisou se transmutar. E assim surgiu um novo sistema midiático, substituindo o nascido na era industrial.
Anos depois, o que as empresas de mídia têm discutido? Com a explosão da popularidade das redes sociais, uma das características mais surpreendentes é que temos mais informação ofertada, porém menos pessoas informadas. Afinal, saímos do ambiente mediacêntrico para um modelo que Rosental apelidou de “eucêntrico”. Ou seja, as pessoas são produtoras de conteúdo. Nesse ambiente, a informação de qualidade se dilui. Com a recente decisão de o Facebook privilegiar nos feeds da plataforma posts do usuário, tirando o peso do conteúdo publicado por empresas, entre elas as jornalísticas, isso fica mais patente.
Ponto de inflexão
Por outro lado, tem-se questionado mais a maneira como as empresas de tecnologia estão afetando a sociedade em geral. Em relação à mídia, Google e Facebook, salientou Rosental, absorvem dois terços da publicidade digital, o que “tem efeito devastador”. Isso provoca discussões sobre a relação que a mídia tem com essas plataformas. “A novidade é que existe um clima de crescentes preocupação que vão da ética à saúde. Essas preocupações nos levam a pensar que estamos num ponto de inflexão”.
O uso massivo de dados pessoais para fins comerciais tem mobilizado a Justiça e os governos na Europa. Se no passado se discutia muito sobre os abusos e exageros da revolução industrial, chegou a hora de agir em relação às responsabilidades das plataformas tecnológicas. Isso é um dos pontos do livro How To Fix The Future, de Andrew Keen (escritor e empreendedor do Vale do Silício), mencionado por Rosental. Ele também sugeriu a leitura do artigo “How technology is hijacking your mind”, de Tristan Harris, outro empreendedor do mundo digital que chegou a trabalhar no Google, afastando-se depois da empresa (clique aqui para ler o texto, em inglês).
A revista Wired também colocou a questão em evidência ao estampar, em sua edição de março (que já está circulando), uma reportagem de capa que traz a imagem de Mark Zuckerberg todo ferido, para mostrar como o Facebook tem enfrentado duras críticas, principalmente depois de a mídia social ter sido acusada de favorecer a publicação de notícias falsas (trabalho pago a profissionais russos) que influenciaram a eleição presidencial americana. “O Facebook tem cometido muitos erros, mas também está claro que ele começa a reconhecê-los”, disse Rosental.
O professor defendeu um diálogo maior entre os veículos e plataformas como Facebook e Google. “Não podemos culpar as empresas pelo sucesso que têm”. Mas, sim, é necessário destacar a responsabilidade dessas companhias neste cenário em que as fake news impactam eleições e a vida em sociedade.
Rosental apontou ainda que jornais nos Estados Unidos estão em situação crítica. Veículos de circulação local estão morrendo. Desde 2004, revelou, 1383 jornais locais fecharam as portas. E a circulação – excluindo-se dessa conta três veículos: New York Times, Washington Post e Wall Street Journal – caiu de 117 milhões para 67 milhões.
Há outros dados importantes sobre o quadro do jornalismo hoje revelados em janeiro com os números de um levantamento do Gallup para a Knight Foundation (mais detalhes sobre o estudo podem ser conferidos aqui):
- 66% dos americanos entrevistados disseram que os jornais não fazem um bom trabalho na tentativa de separar fatos de opinião. Em 1984, esse índice era de 42%;
- sete em dez adultos nos EUA reportam obter informações, ao menos ocasionalmente, em grandes plataformas de internet, como Google, Facebook e Yahoo;
- 51% dos entrevistados acreditam que críticas negativas feitas sobre política (mesmo as frutos de jornalismo de qualidade) são “quase sempre” fake news.
Rosental, que se define um otimista, reconheceu que as ameaças são grandes e questiona se os governos não deveriam se importar com isso, já que estão se criando “desertos de notícias”. No entanto, ele afirmou que soluções devem vir de pessoas. Nenhum algoritmo, em suas palavras, será capaz de resolver os problemas graves da revolução digital.
Educação para informação e partidarização
No debate que se seguiu à palestra, Stephanie Habrich, diretora do jornal Joca, feito para crianças, comentou que há uma geração de jovens que não sabe lidar com as fake news. O cuidado em explicar notícias de forma didática – foco da publicação – deveria ser uma preocupação dos pais. Sua experiência mostra que, se as crianças não conseguem definir em que acreditar, elas irão desanimar. Desse modo, ficarão mais distantes do jornalismo de qualidade. “Não consigo controlar o que meus filhos estão lendo. Mas consigo educá-los”, afirmou. Ela acrescentou que é essencial ensinar os jovens a ter senso crítico.
Outro convidado do painel, o filósofo Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas da USP e colunista da Folha, que estuda a polarização política no Brasil em seu laboratório na universidade, destacou que existe um problema de definição do que é notícia falsa. Como o termo fake news se populariza, pode-se confundir um erro de apuração com um conteúdo falso feito por ação maliciosa. Sua atenção se direciona mais aos sites hiper partidarizados, que criam distorções. Mas isso, segundo ele, é só uma parte do problema. “Há uma série de procedimentos adotados como arma política inundando as redes”.
Ortellado declarou que é difícil mensurar a extensão das notícias falsas. Existem no Brasil três agências de verificação (um setor que ganhou força recentemente) que são filiadas a entidades internacionais. Seu laboratório trabalha analisando de 3.500 a 5000 notícias que tratam de política e outros temas correlatos (não entram, por exemplo, assuntos de celebridades ou esportes). Com um volume desses, fica claro o tamanho do desafio para se determinar o que erro ou ação maliciosa.
Além disso, o professor da USP observou que o fenômeno tem de ser visto num contexto político maior. A sociedade civil está polarizada e muito do que ela compartilha vai por meio das mídias sociais. Os sites hiper partidarizados são uma espécie de sintoma desse momento. Vivemos uma guerra. “Devemos ter cuidado para não calarmos vozes. A mídia alternativa antes inseria mais diversidade porque o jornalismo industrial tem seus compromissos editoriais. Hoje, temos encontrado mais diversidade no jornalismo profissional. Mas mesmo ele está contaminado pelo partidarismo”, comentou Ortellado.
E o mercado de comunicação?
O tema das fake news e o intenso compartilhamento desse conteúdo gerado por fontes não-confiáveis é complexo e demonstra ter muito campo para discussões, ainda mais que este ano o Brasil terá eleições. Por isso, ele entrou na pauta do Festival do Clube de Criação do ano passado (mesa "Como as marcas podem evitar roubadas em tempos de pós-verdade") . A curadoria do evento buscou profissionais para discorrerem sobre o assunto, com o objetivo de mostrar como inclusive as marcas sofrem impactos com o crescente fenômeno das notícias falsas e a era da pós-verdade.
Foram procurados veículos, agências e anunciantes. Porém, nos surpreendemos com as negativas dadas por muitas empresas. No ano passado, o tema pareceu assustar. No entanto, está mais do que claro que o debate é extremamente necessário para a saúde não apenas do mercado de mídia, mas também para o de comunicação. Afinal, nem as marcas estão imunes a boatos ou ações maliciosas.
Lena Castellón