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Em defesa do audiovisual brasileiro
Paradoxalmente, a indústria audiovisual brasileira vive, nos últimos tempos, seu melhor momento econômico e de reconhecimento simbólico global, ao mesmo tempo em que sofre com ataques do atual governo federal, que recentemente ameaçou acabar com a Ancine (Agência Nacional do Cinema, leia aqui), decidiu mudar a sede da Agência para Brasília (aqui), criticou filmes brasileiros como o longa “Bruna Surfistinha” e suspendeu um edital que tinha entre suas categorias séries com temáticas LGBTQ+ (aqui).
Somado a esse panorama antagônico, a Ancine, criada em 2001 juntamente com o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e com leis alternativas de incentivo fiscal, também sofre uma crise de gestão, que antecede o governo de Jair Bolsonaro.
Esse complexo contexto foi discutido na mesa “O Futuro do Audiovisual no Brasil”, mediada pela jornalista Amanda Queirós, que começou questionando os participantes sobre o que as políticas públicas fizeram para que chegássemos a esse atual traçado no setor audiovisual.
A jornalista e pesquisadora Ana Paula Sousa resgatou um histórico e elencou três dimensões distintas que influenciam a situação do setor: a "crise institucional e de gestão da Ancine", a "animosidade do atual governo federal em relação à cultura", e a própria "mudança no cenário do entretenimento". "Em 2001, o audiovisual se resumia nas produtoras, emissoras de TV aberta – um pouco da TV fechada - e exibidores. Em 2019, muitos outros agentes foram incorporados ao setor: empresas de entretenimento (como Disney, Netflix, FOX, Globo), de tecnologia (como Google, Amazon e Apple) e de telecomunicações (AT&T, Vivo etc)”, pincelou Ana Paula.
Sobre a crise na Ancine, a pesquisadora lembrou que um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou problemas de prestação de contas. Dentro de três semanas, a Agência precisará apresentar um plano de ação. A Ancine precisa ter quatro diretores, mas desde janeiro tinha três. Há três semanas, uma ação judicial transformou o diretor-presidente da Agência, Christian de Castro, em réu, restando dois diretores. Daqui a uma semana, lembrou Ana Paula, outra diretora deixará a Ancine, uma vez que seu mandato irá acabar. "Existe hoje um acúmulo de projetos a serem analisados e que não são liberados. A gente corre o risco de sofrer uma paralisação na produção", avaliou.
Em relação ao governo, a pesquisadora lembrou da fala do presidente Jair Bolsonaro contra “Bruna Surfistinha”, sinalizando que o setor poderia estar em risco, depois do ministro da Cidadania Osmar Terra dizendo que “filme brasileiro não tem público”, até chegar a uma efetiva ação concreta, de cancelamento de um edital com a temática LGBTQ+. Essa ação foi seguida pelo pedido de demissão de Henrique Pires, secretário da Cultura do Ministério da Cidadania. “O governo federal também não nomeou o Conselho Superior do Cinema, o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual, não publicou o decreto da cota de tela (que garante reserva de salas de cinema para filmes brasileiros). Ou seja, existe uma crise institucional na Ancine e um governo que, por suas ações e suas 'não-ações', agrava essa crise”, analisou Ana Paula.
Por outro lado, a jornalista e pesquisadora comentou que a entrada de vários players no setor, mudando a configuração global do audiovisual pode representar uma oportunidade. "Empresas de TI estão buscando conteúdo, as teles estão atrás de conteúdo, as empresas de tecnologia também, é um momento especial para produção nacional", pontuou. "Mas esse momento incrível é acompanhado de uma crise gravíssima na Ancine e de um governo que tem uma posição contrária ao cinema nacional. Como vamos lidar com essas oportunidades?", questionou.
Os participantes da mesa também defenderam que, diferentemente das recentes declarações do ministro Osmar Terra, o brasileiro gosta e prestigia, sim, o cinema nacional.
Para ilustrar esse ponto, a diretora de cena Laís Bodanzky, presidente da Spcine, empresa da Prefeitura de São Paulo responsável pelo fomento do audiovisual na cidade, contou que o longa-metragem nacional “Laços”, live-action com personagens da Turma da Mônica (leia aqui), teve público recorde em seu primeiro dia de exibição no Circuito SpCine (projeto que leva cinema a todas regiões da cidade), "mais que Homem Aranha e mais que Vingadores", contou. A produção tornou-se a quarta maior bilheteria na história de três anos da iniciativa. "Brasileiro gosta de filme brasileiro. O longa sai do cinema, vai para TV e também faz sucesso. As pessoas gostam de se verem representadas, vamos valorizar a diversidade brasileira", disse.
Laís emendou defendendo a necessidade de se proteger o mercado para o filme brasileiro. "Um longa estrangeiro, quando é lançado no Brasil (que é o quarto mercado consumidor de audiovisual do mundo) já chega com o know how de fora, marketing de lá, mais da metade do trabalho de divulgação feito, tudo com muito dinheiro e ocupando praticamente todas as nossas salas de cinema. Faz parte da política pública proteger a diversidade, o nosso mercado", argumentou a diretora.
Mesmo por que o setor audiovisual também tem um impacto enorme no desenvolvimento da economia do país: a atividade representa 0,46% do PIB brasileiro, gerando 300 mil empregos. É um mercado que vinha crescendo em torno de 8,8% ao ano (apesar do baixo incremento do Produto Interno Bruto nos últimos anos), que conta com 12 mil produtoras, gerando um valor agregado de mais de R$ 24,5 bilhões por ano e arrecadando R$ 3,3 bilhões em impostos, segundo dados citados durante o debate por Paulo Schmidt, do Siaesp (Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo).
"Temos que lembrar que até os EUA, depois da Segunda Guerra Mundial, protegeu o setor audiovisual por lá para ajudar a levantar a economia do país. Eles souberam vender a sua cultura e a sua indústria de produtos por trás daquela indústria (do cinema). Eles também criaram leis protecionistas, os canais de TV em território norte-americano são exibidores de conteúdo e não produtores de conteúdo”, observou Schmidt.
Marcus Baldini, da Damasco Filmes, diretor do longa citado de forma pejorativa por Bolsonaro, “Bruna Surfistinha”, lamentou ter que discutir o que o presidente falou sobre sua produção de 2011, que aborda a trajetória de vida de uma garota de programa (em julho, ao transferir o Conselho Superior do Cinema do Ministério da Cidadania para a Casa Civil, o líder máximo do Executivo disse: "Não posso admitir que, com dinheiro público, se façam filmes como o da Bruna Surfistinha. Não dá").
"Acho um retrocesso. Essa discussão passa por um desconhecimento daquilo que a gente faz”, lamentou Baldini. "'Bruna' é um sucesso e achei que já havia mostrado, com isso, há anos, que ele realmente deveria ter sido produzido. Os debates para o nosso mercado deveriam ser outros, por exemplo, sobre como atingir ainda mais o público, como chegar a mais salas de cinema, como dialogar com um mercado externo, tendo a questão da língua como elemento dificultador, esses deveriam ser os nossos debates e não se ' Bruna Surfistinha' deveria ou não ser feito - é óbvio que o filme deveria ser feito”, pontuou.
Valéria Campos