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Festival do Clube 2023

Carla Madeira: fragmentos de um processo criativo

29.09.23

O auditório Simon Bolívar, do Memorial da América Latina, ficou pequeno diante do interesse do público do Festival do Clube de Criação 2023 em ouvir a publicitária e escritora mineira Carla Madeira e saber mais de seu processo criativo. Autora de três livros que estão em destaque entre os brasileiros – "Tudo é Rio" (2014), "A Natureza da Mordida" (2018) e "Véspera" (2021) –, ela é também sócia-fundadora e diretora de criação da agência Lápis Raro (leia mais sobre a escritora aqui).

Carla foi entrevistada por um trio composto por Danilo Janjacomo (líder criativo e conselheiro do Observatório da Diversidade), Isabella Barros (diretora de estratégia da Mutato) e Roberta Harada (ECD da Wunderman Thompson Brasil). Para abrir o painel, a escritora leu um texto: “Fragmentos do que não se pode ter por inteiro”. Ele foi publicado na revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras.

O Clubeonline traz trechos desse texto.

Eu escrevo.
Aceito esse tempo presente indicativo de um ato contínuo.
Os acontecimentos me mordem anárquicos, o acaso me inspira.
O fugidio me pesa uma carreta de minério sobre o peito.
Montanhas inteiras dentro dela. Meu quintal se esvai sobre rodas.

Todo aquele que escreve vem de alguma infância – a palavra mais antiga de todas.
Mal a reconheço, tanto tempo eu não a via.
Escrevo saudade todo dia.
Do nada, vou sendo feita.
Meu sistema nervoso é tecido em dedos de prosa.
Tenho a plasticidade de ser o que digo. De ser o que ouço. De ser os sons de todas as
vozes que vieram antes e viraram corpo.”

Se me perguntam como nasce uma história, lembro-me de uma mulher que me veio à
mente enquanto o desejo de conhecê-la me tomou o coração.
Nasço com ela.
O rapaz desajeitado, alto e magro, com pernas desencontradas e mãos suando fala do
beijo que cometeu.
Eu o escuto
e escrevo sobre borboletas triscando o néctar de um amor que começa.
E assim vou indo.
Quando menos espero, bateio um diamante entre pedras.
E por um instante, minha vida está completa.”

Outro trecho traz uma biografia:

"Nasci em 1964, em Belo Horizonte. Filha de um erudito matemático e de uma mulher sábia, de olhos e mãos encantadas, que mal completou o fundamental. Cresci entre razão e emoção, entre cidade grande e interior, entre crer e questionar. Enquanto fazia um curso superior de matemática na Universidade Federal de Minas Gerais, embora tivesse facilidade e interesse, fui ficando triste. As linguagens artísticas me faziam falta: cantar, compor, escrever, pintar. Mas ser artista, assim de verdade, no oficial da palavra, era algo perigoso para meus pais religiosos e enorme demais para mim. Ainda é imenso, sempre me soa pretensioso. Fui ser publicitária. Larguei a matemática, sem trancar matrícula, movimento radical para uma libriana, e trouxe a alegria das linguagens artísticas para perto.

Há 35 anos faço a direção criativa da Lápis Raro, uma agência de comunicação da qual sou uma das sócias. Em 2014, já mãe de dois filhos e no terceiro casamento, publiquei meu primeiro romance, 'Tudo é rio', depois veio 'A natureza da mordida' e 'Véspera'. Se dependesse de mim, eu gastaria mais do que sete dias para criar o mundo, levaria, de propósito, a vida inteira."

Literatura e publicidade

No bate-papo, Isabella perguntou se a Carla Madeira percebe semelhanças entre a literatura e a publicidade. A escritora fez menção ao “coeficiente artístico” de Marcel Duchamp, que se entende como “relação aritmética entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não-intencionalmente”.

Seguindo esse conceito, Carla afirmou que existe um intervalo entre o que se pretende e o que é feito. “A publicidade tem coeficiente artístico zero. A intenção tem de ser percebida. Na literatura não. É o espaço absoluto do autor. O publicitário tem de levar o público para a mesa. O autor não: tem de deixar o mundo do lado de fora”.

Danilo quis saber sobre referências de outros autores. Para Carla, “de maneira rasa”, existem dois tipos de escritores. “Um é de composição, como Umberto Eco, que trabalha o contexto histórico, investiga tudo. Faz a composição e depois conta a história. E o outro é do improviso. Sou de improviso, mas isso não significa despreparo. Como na música, isso exige um profundo conhecimento. Tenho uma facilidade de deixar o improviso vir, com o pé no chão. Parto do acontecimento. Do que aquela personagem especifica fez”.

Entre outras questões apresentadas pelos entrevistadores, Roberta abordou o empoderamento feminino. “Quando li ‘Tudo é Rio’, senti uma romantização da violência. Me tocou. Como vê o papel da literatura nessas causas?”. Carla respondeu falando de publicidade também, dizendo que há coisas de 30 anos atrás que não faríamos na publicidade hoje. “Que bom que melhoramos”, completou. Já para quem escreve, a situação é outra. “A literatura não é um espaço de boas práticas. Não é um livro de boas práticas, mas uma ocasião", declarou. Literatura, continuou, "é olhar uma experiência. É um lugar, graças a Deus, para olhar para o mal”.

11º Festival do Clube de Criação

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