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Dulcídio Caldeira: como um 'Jarpes sodi vidium' pode resultar num GP
O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto ilustrou a determinação e o esforço necessários para se produzir um poema, comparando o processo criativo a um ato tão corriqueiro quanto trabalhoso como a escolha do feijão: “Catar feijão se limita com escrever: joga-se os grãos na água do alguidar e as palavras na folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo: pois para catar esse feijão, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco.”
A poética comparação poderia ilustrar uma das ideias centrais do painel “Por que gosto tanto de propaganda? (Ou por que alguns amigos me chamam de Obsessídio)”, comandado por Dulcídio Caldeira, diretor de cena e sócio da Boiler Filmes, no Festival do Clube de Criação. Durante o painel, ele citou do cineasta Stanley Kubrick ao redator Jim Riswold, do diretor inglês Jonathan Glazer ao ator Van Damme, costurando fatos - alguns aparentemente desconexos – e transformando a colcha de retalhos em pequenas histórias rápidas que conversam entre si de tal maneira que somente um profissional obcecado por ideias – ou “Obsessídio” - poderia fazer. No final, arrancou entusiasmados aplausos da plateia.
Dulcídio começou sua exposição contando que, quando tinha 18 anos, tocava em uma banda e queria compor canções. “Depois de escrever algumas letras não muito animadoras, pensei como seria mais simples se a letra de uma música pudesse ser composta por versos que não significassem nada”. Escreveu, então, um verso com algumas palavras aleatórias: “Jarpes sodi vidium / Coquelarium marca dest / Tutelarium Dimin Vit / Nuvelora tupenvest”.
Em seguida, criou uma história que justificasse os versos, como o refrão de uma música. A letra falava de um disco voador que caía no mar e se transformava em um disco comum (tipo vinil), “do tamanho de um cruzador”. Quando a ONU concluía que o UFO era um LP de fato, construíram “um toca-discos colossal para a humanidade enfim ouvir a mensagem espacial”. Apesar de ele ter gostado do resultado, a banda não aprovou e a letra foi para a gaveta.
Corta para duas décadas mais tarde. Do adolescente músico a diretor de criação da Almap muita coisa tinha mudado, mas a ideia do disco voador-LP ainda sobrevoava seus insights. “Pensei que seria interessante fazer alguma peça para festival com ela. Como não parecia algo muito pertinente para Bauducco, Boticário ou Volkswagen, procurei o Paulo Camossa, nosso diretor de mídia na época, e perguntei se ele era amigo de algum cliente ligado ao mercado musical. Ele disse que tinha um na revista Rolling Stone. Ligou para eles e pegamos a conta”, contou.
Depois de marcada uma apresentação em resposta ao briefing, Dulcídio disse que a equipe levou várias ideias ideias ao veículo, inclusive uma baseada em um clipe com a música "Jarpes Sodi Vidium". “O cliente aprovou algumas. Mas não a da música com a minha letra, que voltou para a gaveta.”
Tempos depois, André Kassu e Marcos Medeiros (atualmente sócios da CP+B e, naquela época, na Almap), tiveram uma ideia para uma campanha para a Rolling Stone, voltada para mídia impressa. “Eu gostei da ideia. Mas achei que eles poderiam fazer melhor pelo talento que tinham. Os dois estavam empolgados e preferiram seguir com a ideia. Como era uma iniciativa deles, eu não interferi”, brincou, ao mostrar uma das peças (com Amy Winehouse) do que se tornaria, mais tarde, a campanha “Música. Entenda do que é feita” (veja acima).
Dulcídio lembrou que a conta da Rolling Stone acabou saindo da Almap e ele próprio deixou a agência para começar a dirigir. Kassu e Medeiros conseguiram emplacar a ideia com a revista Billboard e o trabalho conquistou GP de Print em Cannes em 2010.
“Para mim essa história traz duas mensagens: primeira mensagem, Cannes não tem critério algum”, divertiu-se. “Acho que não é bem essa a mensagem. Primeira mensagem é que, em um processo criativo, ninguém é dono da verdade. E é importante estar aberto para isso. Como diretor de criação ou como diretor, onde qualquer um no set pode trazer uma ideia boa”.
A segunda mensagem, segundo Dulcídio, é a que o fez lembrar da história. “É o seguinte: mais importante do que ter ideias sob encomenda, que é o que fazemos todos os dias em propaganda, é procurar ideias o tempo todo. Todo tipo de ideias”, defendeu. “Porque uma ideia puxa outra. Mesmo que de uma forma totalmente improvável. A ideia que você tem hoje em uma mesa de bar pode virar algo daqui a alguns anos. Se eu não tivesse escrito os versos ‘Jarpes Sodi Vidium’, talvez não tivéssemos ido atrás da conta da Rolling Stone. E talvez a ideia da Amy não tivesse surgido. É óbvio que, com isso, não mereço crédito algum na campanha que ganhou o GP. A ideia é deles, que, inclusive, sempre que podem me lembram da minha falta de critério, dizendo: ‘pelo menos foi GP, não é?”, compartilhou.
Para defender a importância de procurar ideias o tempo todo, Dulcídio resgatou a história de um café que tomou com Tom McElligott, “o criativo mais famoso do mundo na década de 1990”. “Como eu era nadador e tinha treinado minha vida inteira para competir, perguntei para ele se a criação se parecia de alguma forma com um esporte - onde quanto mais você treina, melhor fica. Ele me disse que tinha servido na Marinha. E que lá diziam que se você quisesse ser um bom fuzileiro, tinha que dormir e acordar com o seu fuzil. E que, no começo da carreira, passava dia e noite com os anuários. Devorava as ideias e sabia de cor as fichas técnicas. E que, mesmo assim, levou quatro anos para fazer o seu primeiro bom anúncio”, narrou.
Dulcídio também trouxe o exemplo do jogador de basquete Kobe Bryant, falecido em 2020. Ele contou que o treinador Phil Jackson chegava todo dia às 8h30 no ginásio e encontrava o atleta dormindo no carro, no estacionamento. “Kobe abria o ginásio às 5 da manhã e fazia um treino sozinho antes de toda a equipe chegar para treinar de novo com eles”.
Com seu histórico na natação, Dulcídio não poderia deixar de citar um exemplo da modalidade. Segundo o diretor de cena, Michael Phelps fez um pacto de treinar seis anos consecutivos, sem faltar nenhum dia, antes dos Jogos Olímpicos de Pequim. Então, Dulcídio mostrou a imagem do momento em que o Phelps ganhou a oitava medalha de ouro nos jogos Olímpicos de 2008, “comemorando que não precisaria treinar no dia seguinte”.
Dulcídio também questionou: “Qual o limite para a obsessão no trabalho?”. Para responder, mais uma vez voltou aos 18 anos, quando leu o livro “Zen e arte da manutenção da motocicleta”, que defende como “um trabalho bem feito pode fazer bem para uma pessoa”. E apresentou uma citação que resume a obra: “A motocicleta que você está consertando é você mesmo”. “Acredito muito nisso. Se você gosta do que você faz, trabalho bem feito conserta a alma. Em outras palavras, acho que o limite para obsessão no trabalho é… Depende do quanto você gosta do que faz”, concluiu.
Ele elencou quatro tipos de obsessão que considera “recomendáveis”: a obsessão pelo estudo do que já foi feito (para não repetir a história e se inspirar), pela busca de ideias, por colocá-las em prática (porque "ideia na gaveta não serve para nada, a não ser para ajudar o Kassu e o Marcão a ganharem GP em Cannes”) e a obsessão pelo craft (“porque uma boa ideia mal executada não vai a lugar nenhum”).
Em seguida, trouxe diversos exemplos de “obsessivos” famosos, como o fotógrafo Cartier- Bresson, que dizia que “as primeiras 10 mil fotografias são as suas piores”; o redator norte-americano Hal Riney e seus complexos diagramas de roteiro, nos quais ele definia cada segundo do que deveria acontecer em um comercial de 30”; Jeff Goodby e Rich Silverstein; e Stanley Kubrick, este último chamado por Dulcídio de “o grande Jedi dos obsessivos”.
Dulcídio trouxe à tona a história de que, no último discurso do diretor de “2001 – Uma Odisseia no Espaço” e “Laranja Mecânica”, após uma premiação, ele lembrou de D. W. Griffith, conhecido por "fracassos comerciais com filmes ambiciosos". Kubrick comparou a trajetória de Griffith à lenda de Ícaro, que voou perto demais do sol e morreu com as asas derretidas. “No final, Kubrick disse: qual a moral dessa história? Não voe tão perto do sol? Acho que não. Prefiro acreditar que é: faça asas melhores.”
No final, o diretor de cena da Boiler contou que guardou uma imagem do Instagram que lhe chamou a atenção, em 2012, que, para ele, “parecia sugerir que a fita do gravador poderia movimentar algo posicionado fora do aparelho” (veja a imagem acima). Onze anos depois, ela serviu de inspiração para que Dulcídio criasse e produzisse com a Almap um comercial para o Pacto Global das Nações Unidas (leia aqui e assista abaixo).
Com locução original de Carl Sagan, a peça destaca autômatos de animais selvagens, feitos manualmente pelo artista argentino Pablo Lavezzari e movidos pela fita magnética de um gravador antigo. “Curiosamente, quando eu estava planejando o filme, na nossa casa em Cambury, caiu a maior chuva da história do país”.
Valéria Campos
11º Festival do Clube de Criação
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