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Como salvar este recanto singular do universo
A Terra é um planeta único dentre trilhões de nossa galáxia, e nossa biodiversidade é uma construção muito rara no cosmo. Se ganhamos esse prêmio da natureza, é imperativo que o preservemos. Nesse contexto, o respeito à vida se converte na mais importante regra moral.
Esse foi o conceito que serviu de eixo à palestra “Ciência, valorização do planeta Terra e o entendimento de que a vida é algo extremamente raro”, ministrada desde a Itália pelo físico, astrônomo, professor e escritor Marcelo Gleiser, fundador do Island of Knowledge, um espaço reservado ao debate sobre as grandes questões globais contemporâneas.
A aula foi uma das atrações da 12ª edição do Festival do Clube de Criação, que mais uma vez foi realizado no Memorial da América Latina, em São Paulo. Em sua fala, o professor abordou os principais temas de seu livro “O Despertar do Universo Consciente” (Editora Record). Considerando a vulnerabilidade de nosso planeta, constituído na exceção, ele convidou a plateia a praticar o consumo consciente e respeitar todas as formas de vida.
Baseando-se em uma ética que denomina “biocentrismo”, Gleiser conduziu a assistência por uma viagem pelo túnel do tempo, analisando as diversas fases do desenvolvimento humano, desde o início do período Neolítico. Ele mostrou como a tecnologia elevou a qualidade de vida das comunidades, ao passo que forneceu maior poder destrutivo às forças envolvidas em guerras.
Ao analisar os avanços no campo do conhecimento, Gleiser alertou para a disseminação da ideia iluminista e positivista de que a humanidade é dona do planeta e pode controlar a natureza. “É uma conduta arrogante, que precisa ser mudada”, afirmou.
O cientista destacou os desafios que se apresentam ao crescimento populacional desordenado. Na época da Gripe Espanhola, em 1918, o planeta tinha menos de 2 bilhões de pessoas. Em 2024, esse número mais do que quadruplicou, com mais de 8 bilhões de residentes humanos. “Precisamos levar em conta que cada cidadão precisa de alimento, água, energia e educação, e que os recursos do planeta são finitos”, advertiu. “Antigamente, vivíamos em aldeias, muitas delas em conflito permanente, mas agora precisamos entender que somos uma única tribo, que precisa solucionar, em esforço conjunto, o grande problema global”.
A crise não é somente ambiental, mas também social, segundo Gleiser. “A distribuição de renda é injusta e desigual, mesmo nos países desenvolvidos”, disse. Para o cientista, necessitamos de uma sistêmica da realidade, de forma a compreender que os descompassos sociais e econômicos conduzem a práticas que intensificam os ataques à natureza e aceleram as mudanças climáticas.
Para Gleiser, a humanidade deveria ter aproveitado as lições da pandemia de covid-19 para pensar nos pilares da sobrevivência. “De onde vem a comida, a água e a energia elétrica?”, perguntou, de forma retórica. Elas dependem da disponibilidade da Terra e do empenho de diversos atores do processo produtivo, normalmente desprezados. “A gente acha que alguns empregos são menores, mas todas as funções urbanas e rurais são fundamentais à nossa sobrevivência”, pontuou.
Ao finalizar a palestra, o cientista afirmou que é preciso comunicar essa urgência da mudança de postura, de forma a sensibilizar cidadãos, empresas e governos. “Dependemos uns dos outros neste momento e temos de agir para salvar este raro planeta”, assinalou. “Precisamos de humildade, graça e generosidade, porque a generosidade regenera”.
Vozes reunidas em nome da natureza
Logo na sequência da palestra, um competente time de cabeças pensantes discutiu a questão climática em diálogo com Gleiser. O painel “Emergência climática: doses extraordinárias de água, fogo, frio e calor. O que ainda pode ser feito para reequilibrar o planeta?” foi mediado por Tomás Correa, cofundador da Felicidade Collective.
Participaram do debate Amanda Costa, diretora do Instituto Perifa Sustentável e conselheira jovem da Rede Brasil do Pacto Global da ONU; Diana Guimarães, gerente sênior de sustentabilidade e inovação social da Natura; Juliano Salgado, cineasta e presidente do Conselho Diretor do Instituto Terra; e Júnior Yanomami, presidente da Urihi Associação Yanomami e presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami.
Em sua primeira intervenção, Tomás questionou as métricas e os paradigmas que, hoje, determinam o sucesso de um país ou de uma organização. Citou como exemplo a medida Felicidade Interna Bruta (FIB), que se opõe ao Produto Interno Bruto (PIB). O termo foi criado em 1972, pelo rei do Butão, em resposta àqueles que apontavam um crescimento pífio da economia de seu país. A ideia é medir o avanço humano a partir de bem-estar e desenvolvimento espiritual, e não pelo acúmulo de valores patrimoniais e financeiros. Gleiser concordou com Tomás, acrescentando que a medida do progresso deveria estar associada à justiça social e à forma como gerimos a biosfera.
Diana, por sua vez, abordou o papel das empresas na busca do reequilíbrio na jornada civilizatória. O cientista afirmou que é preciso mudar paradigmas. Citou o orgulho brasileiro com os progressos tecnológicos da Petrobras e, neste caso, propôs outra narrativa. “Existe outra visão possível, que é relativa ao consumo das entranhas do planeta, uma canibalização da Terra”, afirmou. “Poderíamos estar usando energia de recursos renováveis, do sol e dos ventos, mas seguimos com as mesmas matrizes fósseis”.
Muitas corporações utilizam a retórica do verde, mas não avançam significativamente na preservação da natureza, observou o cientista. Para ele, as companhias do Sistema B, como exceção, estão contribuindo sistemicamente para a construção de uma economia sustentável.
Na visão de Diana, há muito tempo se fala em sustentabilidade, filantropia e ações compensatórias. Ou seja, as empresas trabalham para minimizar o impacto ambiental de suas operações. No entanto, essa matriz de pensamento precisa ser superada, urgentemente. “Acabou o espaço para esse modelo”. Diana reforçou: “Na verdade, não tem mais o que sustentar; tem é de regenerar”. Ela criticou ainda a referência de validação de ações pelo PIB. “Quando todos tivermos de andar com uma garrafinha de oxigênio, o PIB vai aumentar, mas não significa que isso será bom para a sociedade”, exemplificou.
Júnior Yanomami destacou o prejuízo representado pelo novo Marco Temporal, que restringe as áreas destinadas à demarcação das terras reivindicadas pelos povos originários. Gleiser respondeu que perdeu a fé nos políticos, muitos deles interessados na próxima eleição e não no futuro do planeta. “Se houver uma revolução no modo de pensar, será pelo resgate da sabedoria ancestral de vocês”, acrescentou o físico. “Essa relação sagrada com o planeta deveria ser o ponto de partida para todas as nossas ações, pois precisamos viver harmonicamente com os ritmos ditados pela natureza”.
Para Amanda Costa, a narrativa neoliberal considera que a responsabilidade pela crise ambiental é do indivíduo. “Essa é a conduta do Norte global, das potências que, no passado, vieram aqui e nos escravizaram”, protestou. Segundo ela, é preciso olhar para as políticas públicas que estruturam a sociedade. Em suas palavras, grandes corporações promovem greenwashing e se desviam de suas obrigações. “Como proceder se desejamos realmente uma transformação estrutural e sistêmica, capaz de criar uma sociedade ecológica?”, indagou.
De acordo com Gleiser, a raiz desse descompasso é, de fato, a tradição colonialista. Segundo ele, pessoas em situação de conforto realmente não se sensibilizam com o problema. O professor acredita, no entanto, que cada grupo ou comunidade ideológica pode contribuir com mudanças positivas de comportamento. “Temos de inspirar as pessoas que ainda não se veem como agentes da transformação”, argumentou. “Essa tarefa transcende a história política e econômica de cada um”.
Juliano Salgado afirmou que é necessário que os atores da transformação efetivamente botem a mão na massa, realizando ações reparadoras dos recursos naturais. O Instituto Terra atua desde 1998 na recuperação dos 700 hectares da Fazenda Bulcão, em Aimorés (MG). Ali, foram plantadas 3 milhões de árvores de 330 diferentes espécies. O grupo reabilitou nascentes de água e tornou novamente perene o rio que atravessava a região.
Essa mudança ambiental, segundo ele, permitiu que houvesse um aumento considerável na renda das famílias da região. “Nosso desafio é trazer as pessoas para esse novo paradigma, para viver em comunidade”, assinalou. “A verdadeira transformação não é econômica, mas cultural”.
Para Gleiser, esse é um exemplo da ação transformadora que se espera da sociedade. A missão dos agentes de transformação, em sua opinião, é difundir as narrativas que valorizam uma relação orgânica e saudável com a natureza.
Amanda afirmou que as mudanças em favor do planeta dependem de uma desconstrução da narrativa eurocentrista, branca, masculina e heteronormativa acerca da vida cidadã. Ela não vê oportunidade à estruturação de uma pauta de sustentabilidade enquanto forem mantidos os mecanismos de dominação. A ativista ressaltou que a crise ambiental não impacta a todos do mesmo modo, penalizando, sobretudo, os grupos historicamente esquecidos, especialmente as pessoas pretas e periféricas.
A preservação da natureza é essencial para a sobrevivência dos povos originários. “É onde obtemos comida e água”, comentou Júnior Yanomami. De acordo com ele, ainda faltam às instâncias de governo planos consolidados para lidar com o problema da seca e das queimadas. Ele pediu a ampliação desse debate nas grandes cidades e reclamou dos congressistas de Brasília que se opõem aos projetos e ações que protegem a floresta.
Walter Falceta
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