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Da proibição (!!!) à luta por + patrocínio e espaço na mídia
“O tsunami ainda não chegou, mas vai chegar”. Desse modo, a ex-jogadora de futebol Aline Pellegrino, atleta da seleção brasileira por nove anos, resumiu sua expectativa em relação a mudanças no esporte feminino. Ela tem discutido políticas públicas capazes de proporcionar condições melhores para que as mulheres possam treinar e jogar e de garantir pagamentos iguais aos dos homens que praticam as mesmas modalidades. Mas a frase acima se referia mesmo à busca por maior apoio das marcas para as mulheres desportistas.
Nos últimos anos, os festivais de criatividade têm destacado campanhas que valorizam a mulher, como “Like a Girl” (criação da Leo Burnett para Always) ou “Da Da Ding” (da W+K Delhi para Nike Índia). Vide Cannes, que criou a categoria Glass Lions para premiar a diversidade. Mas, no esporte, na hora de apoiar equipes esportivas, as marcas costumam destinar investimentos maiores a times masculinos.
Para Aline, as empresas sabem que o discurso do empoderamento feminino está ganhando força. O quadro, porém, mudará quando a sociedade começar a pressionar por mais igualdade. “Profissionais de marketing sabem surfar qualquer onda. Eles estão esperando o momento do tsunami”, acredita a ex-jogadora, que atualmente coordena o departamento de futebol feminino Federação Paulista de Futebol.
Aline esteve em um evento na semana passada organizado pelo projeto Dibradoras, criado por duas jornalistas, uma publicitária e uma designer, que discute as mulheres no esporte. Batizado de “As conquistas delas: a história oculta das mulheres no esporte”, o encontro contou ainda com Magic Paula, ex-jogadora de basquete que se tornou famosa internacionalmente, e Fofão, ex-levantadora da seleção feminina de vôlei com cinco Olimpíadas no currículo.
Audiência é o único valor a contar?
Um dos problemas para se discutir a valorização das mulheres no esporte é a pressão pela audiência. Aline critica programas de TV que dedicam a maior parte da grade ao futebol masculino. A bronca não se refere ao fato de que ela querer mais futebol feminino. Ela se queixa que a fatia de atenção dedicada ao futebol masculino sobrepuja as informações de qualquer outra modalidade. Quando se trata das notícias relacionadas às mulheres, as pautas acabam parando nas gavetas.
Com essa postura dos programas esportivos, como a audiência será formada? “Fica chato discutir com os dirigentes da mídia. Eles trabalham com números. Temos de nos preparar para melhorá-los, mas também se podia pensar de outra forma. A gestão do esporte se prende à audiência. Lá fora, esporte é tratado de outra forma, é visto como futuro. Até o marketing dos clubes tem de mudar”, comenta Aline.
Paula argumenta que as mulheres conquistaram espaço no mercado de trabalho e que detém um crescente poder de compra, mas alerta que o Brasil atravessa uma epidemia de inatividade física e que a geração de meninos e meninos hoje praticamente não tem ídolos esportivos. “Precisamos mudar a cultura do país. Tivemos a Olimpíada, mas deixamos passar esse bonde e não formamos mais ídolos fora do futebol. E as crianças não têm acesso às outras modalidades. Não podemos ficar só no futebol”, afirma.
Em tom bem humorado, Paula conta que hoje, quando é parada nas ruas, reconhecem que foi atleta e perguntam se jogava vôlei. “Ou então falam que a avó é muito fã”, diz. Isso demonstra quanto a população jovem se distanciou de outros esportes. “A gente precisa abrir portas. Crianças precisam de referências. As atuais não são do esporte. Novos talentos têm de surgir”, acrescenta. Fofão corrobora: “É preciso valorizar o que temos de bom. O Brasil não é só o país do futebol masculino”.
Qual legado olímpico?
As ex-jogadoras chamam atenção para outra “herança” olímpica. Com os Jogos do Rio, altos investimentos foram feitos. Era preciso fazer bonito aos olhos do mundo. Mas a realidade bateu à porta. Tanto para a obtenção de resultados, quanto para recursos. O cenário atual é de corte de custos. Aline acredita que talvez só a partir de 2024 é que o esporte terá verbas mais apropriadas para manutenção de equipes e atletas.
De todo modo, elas sabem que é preciso estabelecer uma política pública de esporte que garanta a sobrevivência do esporte. Não se pode depender de um único patrocinador para a permanência de times, por exemplo. Hoje, muitos atletas acabam deixando o Brasil para atuar em outro país. No caso do vôlei, a vivência ainda traz o benefício de aprimorar a jogadora. Fofão atuou cinco anos no exterior. “Nunca quis sair do Brasil. Mas na Itália, o nível do vôlei é muito forte. E, às vezes, somos mais valorizadas fora”.
No futebol feminino, acontece de as atletas partirem para países com pouca tradição no esporte apenas para ganharem dinheiro. Disputar um campeonato russo pode compensar financeiramente, mas o risco é a jogadora perder a qualidade técnica.
A proibição
Uma das razões para que o esporte feminino não deslanchasse como poderia foi o decreto-lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941, assinado por Getúlio Vargas. Dizia o decreto: "Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos (CND) baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país". Em 1965, nova medida, desta vez a Deliberação nº 7 do CND, restringe o esporte para mulheres mencionando modalidades. "Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, do futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e baseball". As restrições deixaram de valer apenas em 1971.
Medidas como essa tiveram efeito sobre a prática esportiva das mulheres. Mesmo depois do fim da proibição, o pensamento corrente não estimulava a participação delas. Uma mulher ser atleta era frequentemente resultado de um esforço pessoal. Entrar para uma comissão técnica ou virar treinadora, então, era mais difícil. “Antes, a gente não podia jogar. Como alguém iria se tornar técnica de futebol?”, questiona Aline.
Preconceitos
Paula, Aline ou Fofão não reportam ter sofrido preconceito por serem mulheres. Ao menos de forma direta e de maneira que as prejudicasse no esporte. É o que alegam. Nesse sentido, suas falas se assemelham às experiências de algumas das mulheres que se tornaram sócias de agências de publicidade – cujas histórias o Clubeonline contou aqui. Mas, ao contarem detalhes de suas trajetórias, as ex-atletas demonstram quantas atitudes machistas vivenciaram em suas carreiras.
Dificuldade de premiação – “Sofremos bastante com isso. Quando Ana Moser era capitã, ela brigou muito pelo direito de igualdade com os homens. Diziam que não poderiam equiparar porque não tínhamos medalha olímpica. Isso mudou em 2008, quando ganhamos medalha. A diferença era muito grande. Isso diminuiu. Mas ainda é diferente. É assim também na Liga Mundial”, conta Fofão.
Falta de atenção e uniformes errados – “A gente estava se preparando para a Olimpíada de Atlanta. Fomos fazer amistosos no Canadá. Aí, quando chegaram nossos uniformes, vimos que tinham mandado os do masculino. Tivemos de procurar costureira porque não daria tempo de esperar que enviassem de novo”, lembra Paula.
Acesso vetado – “A seleção feminina estava treinando na Granja Comary (Teresópolis) e a seleção masculina também iria treinar lá. São cinco campos. Nós estávamos proibidas de treinar no campo 1 porque ele era do masculino. A gente brincava dizendo que iria pisar escondido, mas nós tínhamos de entrar na Granja por uma porta pequena, do outro lado. Não era a mesma do masculino. Também nos limitaram à academia menor e com aparelhos mais antigos. Na época, o técnico Renê Simões brigou muito para que tivéssemos acesso às mesmas estruturas dos homens”, detalha Aline.
Escudo contra xingamentos – “Joguei em vários ginásios com gente gritando ‘sapatão’ pra mim. Hoje se fala em psicologia do esporte, mas isso estava muito longe da gente naquele tempo. Tivemos de aprender a nos defender. Às vezes, a gente entrava antes na quadra que era para ficarmos mais preparadas para ouvir as bobagens. Uma vez estava me aquecendo e um homem gritou para eu tomar cuidado porque ele estava vendo meu saco. Outra vez a mulher de um dirigente resolveu entrar com a gente. Os gritos que ela ouviu foram do tipo ‘loira vagabunda’. A gente disse que agora ela sabia o que sofríamos. Ela ficou assustada. Leva um tempo para você criar suas defesas contra esse tipo de coisa”, diz Paula.
Documentário e biografia
O evento das Dibradoras apresentou o trailer do documentário Brilhante, que mostra a trajetória de Fofão, nascida Hélia de Souza, no Lauzanne Paulista, Zona Norte de São Paulo. A direção é da dupla Katia Rubio, do Grupo de Estudos Olímpicos da USP, e Rodrigo Grilo, jornalista com experiência de cobertura esportiva e olímpica. A produção é da Março. O documentário se baseia no livro Toque de Gênio, biografia de Fofão escrita também por Katia e Rodrigo. O lançamento das duas obras acontece no dia 10 de abril.
Desde maio de 2015 no ar, as Dibradoras têm levado ao público questões como “até quando a mídia irá ignorar o futebol feminino? Por que as atletas precisam se submeter ao título de musas antes mesmo de serem reconhecidas como profissionais do esporte? Por que a derrota delas é sempre taxada como vexame? Por que a diferença de salários e premiações entre os gêneros?”. As Dibradoras também se reúnem para jogar futebol e fazer um pós-jogo na quadra com direito a cerveja e bate papo. O projeto conta com site, podcast semanal e canal no YouTube
Lena Castellón