Acesso exclusivo para sócios corporativos
![](http://s3-us-west-2.amazonaws.com/br.com.ccsp.assets/wp-content/uploads/2018/09/21145406/mini-logo.jpg)
Ainda não é Sócio do Clube de Criação? Associe-se agora!
Acesso exclusivo para sócios corporativos
Ainda não é Sócio do Clube de Criação? Associe-se agora!
Minha TV morreu. E a sua não anda nada bem (André Debevc)
Em ano de Copa do Mundo, nada melhor do que comprar uma televisão nova. Nos idos dos anos 1980 e 1990 era assim. E em junho de 1994, na casa do meu avô, à sombra do sovaco do Cristo, no Rio de Janeiro, não foi diferente. Ayrton Senna tinha acabado de nos deixar órfãos de ídolos, o Brasil amargava um jejum de 24 anos sem títulos mundiais de futebol e a TV aberta nadava de braçada nos lares brasileiros.
Lembro até hoje do alvoroço geral na hora de tirar o aparelho da caixa. Era uma televisão estalando de nova, já capaz de reunir a família ao seu redor antes mesmo de ser plugada na tomada. Maior, mais moderno e com imagem bem melhor do que o antecessor, o novo aparelho chegava para ser a estrela da casa. Com seu tubo imenso, era o lugar perfeito para o gato – que sempre atendeu por vários nomes, até mesmo gato – dormir. Na TV nova, em apenas alguns dias, assistiríamos aos jogos da seleção nos Estados Unidos. Minha avó, vendo o tamanho da geringonça recém desembalada, cogitou até em mudar a disposição dos móveis do quarto de televisão, mas logo acabou mudando de ideia, depois de umas duas ou três levantadas mudas de sobrancelha do meu avô (pois é, naquela época a TV já nem morava mais na sala, e tinha um cômodo só para ela, não só lá em casa, mas também em muitos outros lares brasileiros).
Eram mesmo outros tempos. Uma época em que tínhamos que ficar em casa se quiséssemos assistir a um programa. Um tempo de lembranças gostosas, de pão de queijo da minha avó todos os domingos, e de rituais como o do meu avô, que antes do almoço sempre descascava uma laranja, cortando a casca em uma única longa tira espiral. Tempos que não voltam mais.
Hoje os aplicativos e serviços de streaming fazem o aparelho de televisão sofrer, desligado – e em silêncio – suplicando pela nossa atenção. Laptops, smartphones, tablets e internet de qualidade não só decretaram o fim da era dos altares modernos, que teve seu auge com as TVs, como também trouxe de volta dos mortos a expressão “ensimesmado”. Vivemos uma época de solidões compartilhadas. Uma legião de distraídos, imersos em nossas próprias telinhas. Uma era de crianças que não olham o mundo pela janela do carro brincando de dizer o que viram, tempos em que todo mundo fica sabendo das últimas notícias pelo celular. Uma realidade que alguns grandes anunciantes e agências ainda insistem em não ver. Como se a babá eletrônica – e seus clássicos 30 segundos de break comercial - ainda tivesse a força que tinha quando estreou "Curtindo a Vida Adoidado", em 1986.
As emissoras de TV (até as nacionais) já entenderam que quem nasceu depois de 1980 anda desligando a televisão mais rápido do que se imaginaria cinco anos atrás. Muito pela mudança de mídias, mas também pela falta de relevância ou qualidade do que vai ao ar. Mais do que testemunhas, somos os protagonistas dessa mudança, que vai fazendo da televisão a segunda tela de muita gente. Prova disso é a chegada recente do aplicativo de streaming de vídeos e conteúdo da Rede Globo ao mercado, trazendo com ele um lançamento de novela na internet antes mesmo dela ir ao ar na TV (leia aqui). É o digital se apossando do terreno que já deveria ter conquistado, com sua força sendo reconhecida, muito além do YouTube ou do Facebook. Não é que isso seja o futuro. Quem não embarcou nessa é que ainda está no passado.
A verdade é que os pontos de contato com o público mudaram. Mais do que isso: o público mudou. Vivemos um novo jeito de conhecer, assistir, torcer e consumir. Seja conteúdo, informação ou produtos. Uma realidade na qual não existe mais espaço para aquela TV antiga, com programação engessada, sem relevância e com hora marcada.
Aquele aparelho em que vi a campanha do Tetra, o gol de barriga do Renato Gaúcho e que me viciou em "Seinfeld" acabou me acompanhando por quase duas décadas. Da casa do meu avô José – também num ano de Copa do Mundo – mudou-se comigo para São Paulo, há quase dez anos. Por apego aos momentos saudosos que vivi em frente a ela, rodeado de familiares e amigos, demorei para me desfazer da velha TV, que acabou encontrando seu túmulo no meu quarto de hóspedes. Melhor assim. Pelo menos ela não viveu para lembrar que já reinou em casa, exigindo até um quarto só para ela, e agora assumiu definitivamente o papel de mero objeto inanimado onde dormiria o gato, se ele já não tivesse morrido há tantos anos. Exatamente como o saudoso, e outrora glorioso, aparelho de TV.
André Debevc, diretor de criação da Delica Digital