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Inteligência Artificial já mudou o futuro da música (Felipe Vassão)

03.09.18

A Inteligência Artificial já mudou o futuro da música

Qualquer um que assina Spotify já se surpreendeu com as sugestões "na mosca" que a plataforma apresenta, e muita gente mudou completamente seu modo de consumir música após utilizar este serviço.

Esses algoritmos, que apresentam novidades e fazem conexões com nosso comportamento digital, estão redefinindo quase todo tipo de mercado.

Mas, neste caso, estamos falando de curadoria de dados e não de Inteligência Artificial aplicada na música em si. Existe um grau de AI nesses processos de sugestão, mas nada ligado à criação musical.

Ninguém gosta de falar no assunto – músicos principalmente – mas na verdade Inteligência Artificial e Criação Musical caminham juntas há pelo menos três décadas.

No final dos anos 1980, o compositor David Cope se viu num bloqueio criativo e resolveu usar seu conhecimento em programação para se inspirar. Este foi o embrião do software "Experiments in Musical Intelligence" (EMI), que analisava as obras dos grandes compositores de música clássica e recriava peças seguindo seus estilos. Carinhosamente apelidado de Emmy, o programa causou furor no meio acadêmico ao confundir, com suas criações similares, experts em Vivaldi e Bach.

Anos depois, Cope desenvolveu um alter ego, na forma de outro software, batizado de "Emily Howell". Nesse projeto, o resultado criativo é mais sofisticado, resultando em um estilo “contemporâneo” de composição, com traços atonais e harmonias muito mais complexos do que os produzidos pelo Emmy.

Em ambos os casos, os softwares combinavam notas musicais em criações originais, mas cabia aos humanos interpretá-las. Aliás, é possível escutar gravações com músicos de verdade interpretando obras da Emmy e da Emily Howell online (aqui).

Em 2016, a IBM realizou uma parceria com o produtor Alex da Kid, por meio da qual ele colaborou com uma versão do "Watson" - a Inteligência Artificial da IBM - chamada "Watson BEAT". Ele usou este sistema para guiar uma de suas produções. Neste caso, o compositor não desaparece, mas é assistido por uma AI. Acho que veremos muitos desdobramentos neste sentido.

Há pouco mais de dois anos foi lançado um disco composto por outro método de Inteligência Artificial, chamado "Aiva", que se autointitula "primeira inteligência artificial a ter uma obra registrada numa associação de direitos autorais", no caso, a SACEM, orgão francês similar ao nosso ECAD, que me parece muito mais um jogo de marketing do que um marco revolucionário em si. O resultado musical da "Aiva" é um pastiche mezzo Clássico, mezzo Romântico, um estilo que muita gente gosta de batizar de “cinemático”, mas que eu pessoalmente acho bem descartável (aqui).

Mesmo assim, descartável ou não, já temos tecnologia capaz de combinar notas musicais e gerar obras completamente originais, com um grau de complexidade e sofisticação que confundem experts em música.

Em todos os casos apresentados acima, a obra musical foi gerada – ou assistida – por uma Inteligência Artificial, mas a interpretação foi humana. Músicos treinados leram as notas num pedaço de papel e tocaram. Um engenheiro de som captou essa performance e criou um fonograma.

Talvez a tarefa de compor uma obra original não seja novidade para as pesquisas de AI, mas produzir um fonograma ainda é um desafio.

Desde o começo da indústria fonográfica, estamos aprimorando a arte da performance em estúdio, da gravação e mixagem. Aliás, é comum no universo da música pop os produtores terem um destaque às vezes similar ou até maior que os artistas que as produzem. De George Martin a Pharrel Williams, de Phil Spector a Rick Rubin.

Muitas vezes uma canção simplória atinge um status de sucesso simplesmente por receber a roupagem ideal.

Hoje em dia, para uma música ser um hit é preciso ter características sonoras muito peculiares, soar nova, ter um tipo de produção que seja considerada “atual”.

E é aí que a coisa começa a se complicar para a Inteligência Artificial. Estamos falando de conceitos muito subjetivos, de uma percepção que não é fácil de ser traduzida matematicamente.

Este é o momento em que as aplicações de AI em música começam a frustrar os ouvintes, começam a despertar reações de estranhamento e acabam não sendo levadas a sério.

Fazendo um paralelo com computação gráfica, falta uma “sujeira e uma complexidade para aquilo ser considerado realista, o que já é alcançado em alguns casos mais recentes no campo visual.

Talvez o próximo passo para a inteligência artificial na música seja mais sofisticação da sonoridade, incorporação de imperfeições e mais personalidade na geração de fonogramas. Acredito que presenciaremos um salto enorme nesta área nos próximos anos.

Mas o que isso tem a ver com publicidade?

Bom, infelizmente, grande parte da criação publicitária atual se baseia em referências, principalmente quando falamos em música. Foi uma forma que o mercado encontrou de minimizar ruídos no processo criativo, quando falamos de algo tão subjetivo como som e trilha sonora. A liberdade criativa que tínhamos nos anos de ouro da propaganda foi substituída por uma fórmula segura de eficiência, baseada em modas, e que se apropria da linguagem da cultura popular para se tornar relevante. Em um cenário como este, em que a maioria da criação musical publicitária se traduz em copiar algo já estabelecido, é muito fácil substituir esse processo por uma máquina.

Li recentemente um livro chamado A Sociedade Do Cansaço, do filósofo Byung-Chul Han, e ele fala quea máquina não hesita. Isso me fez pensar muito sobre toda essa "falação" em torno da Inteligência Artificial, e até onde as máquinas podem, de fato, nos substituir. Tudo que é repetitivo, lógico e previsível pode - e provavelmente será - substituído por máquinas. Porém, existe um ingrediente imponderável, uma centelha de loucura, que eu pessoalmente acho que é insubstituível.

Apesar de ver com um certo receio o caminho que as pesquisas em AI estão tomando, eu acredito que as máquinas não nos substituirão, e construiremos inteligências artificiais para nos ajudar, nos unir e nos libertar.

Felipe Vassão, sócio e produtor musical da Loud

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