Caso ainda houvesse alguma sombra de dúvida acerca do retorno dos tempos sombrios –embora, nos últimos 128 dias, quase que diariamente os jornais, revistas, podcasts e a mídia independente revelassem, sem meias palavras, os mais variados casos e despautérios de atitudes inconstitucionais, de privação de direitos, de naturalização da violência e de afrontas a uma sociedade, diga-se de passagem, "democrática"– a retirada de um dos comerciais da campanha do Banco do Brasil deu um passo além na escalada de absurdos dispostos na mesa. E duas palavras vêm à mente: arbitrariedade e censura; lembrando que a segunda anda de mãos dadas com a primeira.
Com a intenção de recorrer ao recurso humorístico para criar um paralelo entre o governo e a as agências de propaganda, a imagem mais fria e realista da cena seria a típica e transparente ferocidade do diretor de criação que acredita que a melhor ideia é sempre a dele. Sem precisar da certificação de bacharel em comunicação social, com habilitação em publicidade e propaganda, o senhor presidente da república já pode ocupar a cadeira mais cobiçada da hierarquia da criação, onde o sentador oficial adquire, substancial e divinamente, um direito inalienável de menosprezar tudo o que lhe desgosta e de não não ter a humildade de aceitar que a magia da ideia não está repousada em um indivíduo, mas possui uma forma etérea, que flui de um canto para outro e que, com observação, ousadia, risco e coragem pode ser materializada diante dos olhos de qualquer pessoa, a qualquer instante.
Arbitrariedade: o último capítulo que li da novela tragicômica foi uma declaração do dia 27/4/2019, publicada pelo jornal Folha de S. Paulo –que vale a leitura aberta a interpretação, embora eu só tenha concatenado uma– onde o presidente da república disse "Por exemplo, meus ministros. Eu tinha uma linha armamentista, eu não sou armamentista? Então, ministro meu ou é armamentista ou fica em silêncio. É a regra do jogo". Bom, mas o que no comercial em questão desagrada tanto? A pluralidade da sociedade civil em sua plena constituição? Onde está a ofensividade de pessoas sorrindo, mexendo em celulares mostrando a experiência do usuário no aplicativo do banco? A facilidade para abrir uma conta digital e aproximar para si o controle das suas finanças? Atitudes arbitrárias começam despretensiosas e, aos poucos, constroem um roteiro historicamente comprovado por resultados com potencial para tornarem-se monumentais desastres.
Quando a opinião de um é levada a ferro-e-fogo, mesmo com instâncias de deliberação que ficaram semanas em discussões, aprovando orçamentos, selecionando o casting com base nos estudos demográficos e psicográficos, com horas de debates acalorados e idas e vindas de roteiros e anúncios, para chegar ao ponto mais dilapidado possível –àquele que demonstre a resposta mais adequada ao pedido discorrido no briefing, me ocorrem à cabeça: a intransigência do diretor de criação que é descrente na própria capacidade do time que ele compôs e aquela palavra que muita gente começa a temer dizer, como se fosse "aquele que não se pode dizer o nome" da franquia herética mais adorada da história do cinema.
Censura: na mesma declaração, o presidente ainda disse "A linha mudou. A massa quer o quê? Respeito à família. Ninguém quer perseguir minoria nenhuma [...]". Calma. A massa em questão, ao que me parece, deveria condizer à população do país como um todo, afinal trata-se de um país onde uma assembleia constituinte formulou um documento que daria origem a direitos e deveres a todos os cidadãos e a todas as cidadãs, construindo essa linda maravilha política denominada "democracia", que traz consigo a possibilidade de cada brasileiro e brasileira atingir o máximo das suas potencialidades para uma vida plena, próspera e a existência de uma sociedade em comunhão civilizada.
Mas, se a massa à qual o presidente refere-se equivale apenas ao montante de pessoas que votaram nele –a saber, com exatidão: 57.797.847 votos–, e o país, em sua totalidade, abarca 209.839.707 habitantes, segundo o IBGE, significa que a massa resultante da subtração está, automaticamente, em desamparo constitucional, pilheriada de toda a sorte de direitos, sem possibilidade de representatividade e excluída de toda e qualquer forma de pertencimento? Bom, segundo a declaração citada anteriormente, é isso mesmo. Quem há muito custo conseguiu sua representação imagética nos veículos de comunicação em massa, agora pode ficar destranquilizada que a fase da invisibilidade está voltando em uma velocidade ultrassônica, e sem radares de detecção para apontar a infração.
Fico imaginando o estado de perplexidade do presidente fazendo uma visita às agências de propaganda responsáveis pelos projetos de comunicação das empresas estatais: vai encontrar cabelos tingidos com mais tons possíveis dos que os numerados na escala Pantone, roupas rasgadas, homens e mulheres, brancxs, negrxs, lésbicas, héteros, trans, assexuados e ad infinitum habitando o mesmo ecossistema, as tatuagens preenchendo os espaços de pele da unha do dedinho do pé ao topo da cabeça.
"Isso é um descalabro. Não é possível. Cadê a tradição? Os valores morais? Reveja a equipe, táokey?"
Para além da brincadeira, a situação é alarmante e deve ser tratada com a devida seriedade, porque, por mais insensata e autocrática que a atitude tenha sido, ela demonstra um comportamento complexo de apropriação do que pode e do que não poderá, a partir de agora, ser pensado, dito, apresentado e representado: do que poderá e não poderá ser veiculado.
Hoje, é um comercial tirado do ar porque "ofende" os valores da tradicional família brasileira. E amanhã? O quê vai ser? (Para a resposta, deixo o parêntese aberto para preencher com o que pode vir a ser a próxima espoliação, e com as devidas reticências para que não delimite as probabilidades...
A "democracia" entre aspas não é incidental, é proposital, porque ela está, a cada dia passado, mais esvaziada de sua própria significação e, em mesma escala, sempre distanciando-se de uma forma de governo que abarque a população em sua composição total e irrestrita, sem distinções.
Os 55,13% representam o número de votos, não a completude populacional para quem o presidente da república deve governar o país: o povo não é uma parcela destacável e passível de habitar uma redoma exclusiva e perpetuar a segregação entre "nós" e "elxs" é perpetuar o descaso, a ignorância, os privilégios e estender ao limite a capacidade de elasticidade dessa maneira presunçosa e obtusa de agir.
Que aquele sonho que prosperou no horizonte em 1963 una-se ao governo do povo, pelo povo e para o povo, vislumbrado 100 anos com o lampejo da liberdade: quem sabe esse encontro seja capaz de retirar as aspas para emergir a verdadeira força da democracia.
Por Glauco Mazrimas, redator publicitário freelancer [desempregado], escritor com livro no prelo - pela Chiado Books -, e a favor da democracia sem aspas.