arrow_backVoltar

O Espaço é Seu

Um texto dedicado a todos que trabalharam na F/Nazca (Kassu)

19.09.19

Nunca coma a jujuba roxa

Um texto dedicado a todos que trabalharam na F/Nazca. E aos que sonharam trabalhar lá

Encontrei o meu e-mail de despedida da F/Nazca. Nele estavam lembranças, particularidades e registros que são uma parte importante do que carrego de leveza na bagagem. O enigma da jujuba, ali no título, era uma frase – se não me falha a memória – do Wilson Mateos, para alertar que a roxa carregava a tabela periódica completa. Nunca mais peguei uma sequer. Já para os potes de polvilho, dispostos em salas de reunião com temperaturas de fazer a ponta do dedo cair, não havia uma regra. Eu sempre cavei em busca dos queimados. O polvilho torradinho era uma ponte aérea direto para quem eu fui na infância. Aqueles potes na sala eram pedaços do Rio, com vista para o parque.

República do Líbano, 253. Na primeira vez que eu disse o destino para o taxista, em Congonhas, falei com orgulho. Ele retrucou: doix? Deslumbrado e convidado para adentrar naquele recanto que chamei de casa, sem imaginar que ali eu ouviria a maior quantidade de nãos até aquele ponto da minha carreira. Eu tinha um adesivo da F/Nazca no carro, usava uma camiseta de quando eles "demitiram" a agência toda na mudança para o digital, absorvia tudo o que acontecia à minha volta. Até hoje, não sento na cabeceira de nenhuma mesa porque, nas salas 2 e 3, uma certa cadeira tinha dono. Já na sala 4, a escolha da cadeira era aleatória. E a sala 1? Bom, era pequenina. Um refúgio para cantarmos os grandes sucessos da Sônia Rocha (jovens, deem uma busca). Na Copa de 2002, a gente gritava a plenos pulmões:

Porque a Itália é feita de música,

a Itália é feita de flores.

Na Itália só se fala de amores,

a Itália é plena de cores.

Por falar em canções, como não lembrar do hit "O nosso amor é Lincoln", um verdadeiro poema com o trocadilho que mais irritava o menino do preá assombrado. E por falar em Lincoln, a gente tinha uma votação para eleger o grande momento do ano em que ele estava envolvido. O Grand Prix eterno é o dia do caderno. Não vai ter graça escrito (eu sei), porque isso pressupõe uma imitação com a boca levemente mole e um assovio ao fim. Mas vale o resumo: o Lincoln aproxima-se do Nogueira e pergunta: Você por acaso tem aquele caderno do plano de saúde? Em seguida, ele se assusta com a própria frase e diz em voz alta, como quem duvida de si: Caderno? Sobre o Nogueira, eu escrevi no e-mail: Se ele tem uma foto sua, trate-o bem. Nog é o segundo exato que antecede o nascimento dos memes. Já o Misterioso Professor Quintanilha, cujo nome não revelarei, guardava recortes que eram um Google analógico da propaganda.

Da F/Nazca, guardo superstições estranhas. Em que outro lugar o fato de ver o gambá do estacionamento seria considerado um sinal de sorte? Lá, apenas. O bicho era soturno, tímido, mas quando surgia, você jurava que teria uma ideia. Em dias de desespero, eu deixava uns polvilhos espalhados, para facilitar. Outra superstição: o macarrão do America dava azar. Já a sobremesa, Farofino, era sinal de sorte. Ainda no quesito alimentação, havia a infinita disputa entre a Portuguesa da Camelo e a Castelões, da Brás. E era fundamental escolher um time. Muitos mudavam de lado da torcida da pizza só pelo prazer de tumultuar. Importante: arroz era assunto a ser evitado durante uma época.

No e-mail, um dos itens alertava para o perigo das reuniões feitas no período da manhã. Parecia que uma aura (não é áurea que fala, cacete) reprovadora abraçava as salas e esmagava qualquer resquício de ideia. Outro grande teste de coragem era falar com pessoas de óculos escuros. Isso para um carioca era para lá de estranho, mas em São Paulo aprendi que o uso de óculos escuros pode acontecer em ambientes fechados. Vai entender. Só sei que esse pequeno objeto a cobrir olhos mortais era um indicativo de risco. Não tinha São Bono Vox, nem São Jorge Benjor, os protetores do artifício, que salvasse. Sobre reuniões: você podia medir a duração pelos origamis do Fernand. Ou medir o tempo em que você estava na agência pelas tatuagens do Armando.

Apelidos. Naquela época, eles surgiam aos montes. O Fernando Nobre virou o Praianinho só porque alguém encasquetou que ele tinha cara de quem carregava sempre uma cadeira de praia no porta-malas do carro. A Juliana Uchoa era a Sação, porque uma vez ela disse "essa ação" com um sotaque ainda mais mineiro que o habitual. A Keka ficava irritada quando falavam Kéka. E o Valmir tinha muitos apelidos guardados para disparar a qualquer momento. O mesmo Valmir que uma vez flagrou o Fabio brigando com a impressora, porque ela tinha comido o papel, e soltou a pedrada: Tá achando que só eu me fodo aqui, é? E gargalhou no final. Já a Fátima, 25 anos de F/Nazca, café impecável, reprovou uma campanha do Fabio com um simples "ih" no meio da apresentação. Lá tinha dessas coisas que pegavam até o dono de surpresa.

Quando cheguei, o endereço era o já famoso quadrado branco do parque. Sentia uma pequena inveja de não ter vivenciado o predinho. Quer dizer, era uma grande inveja mesmo. Tanto que guardo a melodia de um refrão cantado em uma festa de fim de ano, na qual eu não estava: a pele, a pele, a pele não é órgão (ritmo de canto de torcida).

Não escrevi na despedida sobre a decodificação da coçada de sobrancelha do Fabio. Nem pretendo escrever agora. Essa parte fica guardada para um outro texto que me foi pedido carinhosamente e no qual só confirmarei a conexão com a F/Nazca. Porém, deixei avisado, em 2008: Discutir com o Fabio é um jogo de xadrez. Só que você já começa em xeque-mate. Já discutir com o Edu é como ir a um show da Dercy Gonçalves. Muito palavrão e muito resmungo, apesar de ele ser o Milli Vanilli do mau humor, tudo fake. No quesito discussão, entenda: não havia gritos, show de esporro para uma plateia emudecida. Os ânimos só ficavam mais exaltados em partida de minissinuca e futebol. Já no final do e-mail, havia o item: Vai aprovar algo na segunda-feira, de manhã? Torça pelo Vasco.

O Vasco era assunto muito sério. Campo minado total. Eu pisei uma vez nessa bomba, com força. Lembro do silêncio do ambiente, seguido de uma sucessão de mensagens (o ICQ dando aquele gritinho: oh, oh...) perguntando se eu estava louco. O Fabio não falou nada, deixou o silêncio se prolongar por uma eternidade. Ele não esperava que fosse surgir uma superstição entre nós no quesito Flamengo e Vasco. Em toda final ou jogo importante que o Flamengo ganhou do Vasco, nós estávamos em cidades diferentes. Ele no Rio, eu em São Paulo. Ele em São Paulo, eu em Guarulhos, que seja. Tem funcionado para o lado do rubro-negro desde então.

No e-mail, lembrei também que as grandes histórias da agência surgiam de madrugada. E a gente invadia muito esse horário. Era uma equipe enxuta e absolutamente unida. "Ah, mas se vocês trabalhavam muito, a agência não podia ser isso tudo de bom". O tempo é quem se encarrega de assentar as experiências e trazer um olhar equilibrado. Pelo retrovisor, digo que as amizades que fiz por lá valeriam cada segundo (Alô, grupo Originals... chora, cavaco!). Isso sem falar do clima, da chance de trabalhar e conviver com tantas pessoas talentosas. Os momentos ruins vieram também, mas são infinitamente menores quando comparados com o que tenho de boas lembranças. Sabe aquela história de “um dia você vai rir disso”? Pois então.

Um alerta que mantenho: se o Marcão Monteiro falasse metade do que ele pensa, já estava preso. Uma atualização que merece ser feita: ao mesmo tempo, é uma pena que ele não fale aquelas coisas que ficam presas em uma risada tímida. Naqueles tempos, o PowerPoint era o Oswaldo Montenegro dos programas. Fosse hoje a despedida, avisaria que o Keynote aceita tudo.

Mesmo aqui, tento não chegar ao final daquele e-mail. Desde a saída do Fabio, eu busco entender, em vão, o que leva um grupo de comunicação a sacrificar a agência que abriu uma avenida inteiramente nova na propaganda brasileira. O estilo da F/Nazca é inimitável. É um traço bem característico, sem muitas licenças, passional. Afinal, o Fabio não montava apenas uma equipe, ele construía torcidas. A gente amava, odiava, sofria e comemorava com intensidade. Só com a distância, fui procurar um equilíbrio desses sentimentos, mas ainda hoje percebo esse jeito passional.

Retorno para a nostalgia. "Você pode ter cargo, talento, dinheiro. Mas se o seu Geraldo não sabe o seu nome, você não é nada." Esse mandamento foi fundamental para a minha sensação de pertencimento, na F/Nazca. Quando o seu Geraldo falou o meu nome, senti como se tivesse cruzado o Canal da Mancha nadando, de moleton. Era um feito inédito. O seu Geraldo gostava de chamar o carro do Renato Simões de rabecão, para a nossa alegria.

É preciso encerrar o texto, mesmo com tantas histórias a me rondar. Mas calma, que eu ainda não falei do Edu Martins, o Gudin. Ele rende um livro de causos. Um deles envolve o hábito de jogar videogames de F-1 contra o Fabio. Sim, ele tinha essa imunidade diplomática sonhada por todos. Bom, quando ele saiu da F/Nazca, caminhou até a mesa do Fabio e revelou um segredo escondido por anos: Quando entrar na curva, aperte tal botão para o carro não derrapar. Foi embora, orgulhoso, sob uma nuvem de xingamentos. Detalhe importante: eu comecei a trabalhar na mesma semana em que a Lu Rodrigues. A Lu (que não ouvia Metallica e tinha um cabelo com apelido) que casou com o Marcão Medeiros que hoje é meu dupla e sócio. Tudo encadeado.

Há 11 anos, fechei o computador logo depois do envio do e-mail e levantei da minha mesa com lágrimas de episódio do This is Us. As mesmas que vieram quando li a carta de saída do Fabio. Trabalhar na F/Nazca era bom para caralho. Essa era a frase final do e-mail de despedida. Minhas filhas nasceram quando eu estava lá e, até hoje, quando passamos em frente à agência, elas comentam algo e eu conecto diversas memórias. Desde a Ju entrando fantasiada de Minnie na criação até a Clarinha pegando as danadas das jujubas nas salas de reunião. Outra conexão. Eu e a Penélope saímos de um apartamento com vista parcial da praia direto para a São Paulo da Avenida Santo Amaro. Foi duro. A nossa labrador, Paçoca, veio na mudança e entendeu menos ainda. Sem calçadão, o jeito era andar no parque para amenizar. Um certo domingo, olhando a F/Nazca, nós ouvimos um grito: Tá virando paulista, hein? Era o Fabio da janela. O mesmo Fabio que achou a Penélope engraçada porque ela ameaçou passá-lo por um corredor polonês, caso ele não aprovasse uma ideia minha.

Em um ano tão bruto como este, escuto o áudio do menino das três conchadas de galinha quase todos os dias para recuperar a docilidade. E digo para quem decidiu esse destino da F/Nazca: ô amigo, rá, tu ratiou parça, tu ratiou muito, muito, muito. Eram três conchadas, repito, três conchadas de criatividade, a gente saiu de lá embuchado de memória boa. Pode perguntar pro Cauã, se tu quiser.

André Kassu

O Espaço é Seu

/