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'Que um dia não seja + necessário celebrar o Dia da Mulher' (Mônica Charoux)
"Desejo que um dia não seja mais necessário celebrar o Dia Internacional da Mulher".
Escrevi essa frase há muitos anos, por ocasião de outro dia 8 de março. Sigo desejando fortemente o mesmo, mas vejo, diante da onda de misoginia e machismo que se agiganta, no Brasil e no mundo, quão ainda mais distantes estamos dessa utopia. Isso a despeito de termos tanta informação e ativismo feminista. Arrisco dizer que é justamente por essa maior consciência, somada aos suados avanços da agenda feminista, que vemos tanto reacionarismo, tanta violência: dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública* indicam que 18,6 milhões de mulheres sofreram violência no país em 2022, o equivalente a 14 casos de agressão física por minuto.
Como a violência de gênero é universal, a despeito de atingir mais fortemente mulheres expoentes de minorias ou maiorias minorizadas - como LGBTQIA+, negras, indígenas, PDCs, imigrantes, pobres, periféricas etc - uso meu lugar de fala e minha própria história para tratar da violência e dos abusos que sofri ao longo de 25 anos de carreira, porque acredito que esse relato serve para medir o abismo em que nos encontramos. Afinal de contas, se o que contarei a seguir aconteceu comigo, com todos os meus privilégios, o que acontece com outras mulheres de perfis menos favorecidos?
Escolhi os fatos mais grotescos porque os mais habituais foram tantos que a memória e o tamanho do post não dão conta (tanto que me levaram a escrever este artigo). Mas posso afirmar que sofri assédio de conotação sexual em TODOS os ambientes de trabalho pelos quais transitei. Pois incontáveis foram os assédios sutis, travestidos de “elogios”, de ofertas que trazem embutidas ameaças veladas de boicote ou dificuldades de progressão na carreira, e as tentativas de sedução por parte de “superiores” hierárquicos, que bancam o galã ou o amigo atencioso (quando não estão fazendo mansplanning, gaslighting, manterrupting e bropiating*).
Só vim a ter meu atual entendimento sobre a dimensão de muitos desses fatos depois de:
1) amadurecer como pessoa;
2) me tornar uma feminista informada;
3) viver numa época em que passamos a compreender e nomear corretamente condutas e fatos antes vistos apenas como “parte da vida”, “parte do jogo” nas relações hierárquicas e entre gêneros; ou como peculiaridades, extravagâncias de personalidade ou puro folclore de “lideranças” tóxicas e autoritárias.
Vamos aos fatos:
- Em meu primeiro estágio no fim dos anos 1990, fui obrigada a “desfilar” com outras colegas novatas diante dos colegas, que tinham como tradição formar um júri para eleger a estagiária mais "gostosa" da temporada.
- Um chefe contava às gargalhadas que era perguntado frequentemente sobre onde contratava suas funcionárias, para que revelasse a “fonte fornecedora de gatinhas”. Esse mesmo chefe também ria ao dizer que recebia pedidos de empresários para que fossem enviadas às coletivas de imprensa “a repórter X ou Y” para embelezar o evento.
- Numa viagem a trabalho, o grupo que eu integrava, e no qual era a única mulher, foi convidado para um almoço. Durante a refeição comecei a receber gracejos indesejados de um dos presentes, enquanto os demais assistiam impassíveis. Na van de volta ao hotel ele se sentou atrás de mim, e ficou literalmente babando no meu cangote, a ponto de, numa freada brusca, ter se desequilibrado e, “sem querer”, morder meu ombro. O empurrei e protestei indignada, ele deu risada, pediu desculpas pelo acidente e, novamente, ninguém se manifestou.
Chegando ao hotel, fiquei tensa ao constatar, no corredor do meu andar, que o meu quarto estava ao lado do dele. Entrei no meu quarto e, dali a uns 5 minutos, começaram a esmurrar a porta. Era ele, dizendo que queria entrar para tomarmos uma saideira. Chamei a recepção, expliquei a situação e, no período entre meu chamado e a chegada de um funcionário, o assediador seguiu batendo incessantemente na porta. Ao constatar a chegada do concierge, abri a porta, e o assediador entrou no quarto, e, como ele se recusava a sair, saí eu. Tive que esperar no corredor enquanto o concierge o retirava do recinto. Contei o acontecido a todos do grupo e à organização do evento. Nada aconteceu.
- Um profissional sênior de comunicação, contratado para dar consultoria externa à empresa na qual eu trabalhava, me disse em nossa primeira conversa que sua perspectiva era muito importante porque, diferentemente de mim, ele não tinha uma visão apaixonada da empresa (numa referência velada ao fato de eu, à época, namorar um dos executivos da empresa). Nessa mesma conversa ele disse que não fazia queda de braço com mulher, aludindo a potenciais divergências e conflitos profissionais que poderiam surgir em nossa futura convivência.
- Antes de assumir publicamente o namoro com esse mesmo executivo recebi, durante meses, diversos e-mails anônimos ameaçadores e repletos de insultos. Um deles, inclusive, foi enviado ao CEO da empresa, que me chamou à sua sala para me mostrar a mensagem e, sarcasticamente, me constranger dizendo constatar que eu estava cuidando muito bem da nossa imagem corporativa.
- Um chefe tentou me roubar um beijo no carro, no trajeto de volta de um almoço profissional, no que foi imediatamente rechaçado. Lembro da sensação constrangedora que carreguei por muito tempo, como se tivesse sido eu a fazer algo errado. Em mais de uma ocasião depois do episódio, esse chefe atribuiu jocosamente a culpa do seu gesto ao excesso de vinho dizendo, durante reuniões de trabalho só comigo para planejar eventos da empresa, que era melhor não ter esse tipo de bebida no menu, porque do contrário ele não poderia “se responsabilizar” por seus atos.
- Numa viagem a trabalho para representar a empresa na recepção de um prêmio, cuja entrega foi realizada num hotel, encontrei um importante cliente que também estava sendo homenageado no evento. Já nos conhecíamos há muitos anos, e tínhamos uma relação superficial e protocolar. Ele me convidou para um drink no bar ao lado do espaço da premiação, e mal chegaram as bebidas, me disse que sentia haver uma grande afinidade entre nós e me convidou para subir para o seu quarto. Fiquei tão chocada que, num primeiro momento, só consegui declinar e dizer que era casada (o que não era verdade). Enquanto mexia na aliança de casamento, ele disse que não via nenhum problema nesse “detalhe”. Respondi que não tínhamos qualquer afinidade, tampouco a mesma visão sobre matrimônio, me levantei e fui embora. Ao voltar para a empresa no dia seguinte, relatei o acontecido às lideranças. A resposta: “Melhor não te mandarmos mais sozinha para eventos assim para evitar esse tipo de situação”.
- Tive um evento de saúde potencialmente fatal, que me levou à UTI. Ao regressar de minha licença médica, um dos líderes da empresa entrou na minha sala e, em dado momento, enquanto falámos sobre minha recuperação, sequelas e ajustes de rotina necessários em função do diagnóstico, comentei, entre outros fatos, que não poderia mais tomar anticoncepcional. Ele então me diz: “Bom, então daqui pra frente é melhor você ver bem com quem vai pra cama”. Em meio a minha incrédula indignação reagi mostrando-lhe o dedo médio, o que foi recebido com total espanto. Diante da cara surpresa do meu interlocutor, mesmo estremecendo por dentro, ainda consegui dizer: “Para comentários escrotos, respostas escrotas”. Ele saiu da minha sala de fininho e eu, na sequência, me dirigi à sala de outro executivo, hierarquicamente acima de todos na empresa e meu gestor direto, e relatei o que havia acontecido. Sua primeira pergunta: “Havia alguém mais na sala com vocês?”. Não havia. E talvez isso explique o porquê, apesar dele me assegurar que reportaria esse fato ao HQ da empresa, descobri meses depois que isso nunca foi feito.
Quando, transcorrido algum tempo, voltei a ter sérios problemas com o mesmo líder assediador, fiz uma denúncia diretamente aos executivos globais de Recursos Humanos e Comunicação da empresa. Uma investigação “independente” foi aberta, sem resultar em qualquer sanção ao assediador. Meses depois fui demitida sob a alegação de redução de custos da empresa.
Não foi nada fácil escrever essas linhas.
O fiz no intuito de, através do meu relato, alertar para o fosso entre a idealização e a realidade das inóspitas condições de trabalho para mulheres. Pois o mercado de trabalho segue muito complacente com a violência de gênero, naturalizada em ambientes tóxicos, onde a área de RH muitas vezes funciona apenas como um puxadinho que acochambra as arbitrariedades das “lideranças” empresariais. Muitas das quais se servem cinicamente da agenda de gênero para saírem bem na foto no quesito S da agenda ESG, posando de signatárias de pactos de entidades promotoras dos direitos femininos e de boa gestão de talentos (ONU Mulheres e Great Place to Work deveriam rever seus critérios de aferição para outorgar seus selos #ficaadica ).
Se meu relato ajudar, uma mulher que seja (em especial as mais jovens), a ter mais consciência sobre violências que seguem indecentemente naturalizadas no ambiente de trabalho, terei celebrado o Dia Internacional da Mulher a altura do que a data pede.
Mônica Charoux, consultora sênior de comunicação corporativa e relações-públicas. Ativista em questões de gênero e diversidade
Leia anterior da coluna "O Espaço é Seu", aqui.