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O Espaço é Seu

Passar a borracha? Jura? (por Fernando Campos)

27.10.14


Antes que você comece a ler, queria combinar uma coisa. Este tentará não ser um texto político/ideológico. Pelo menos farei o possível para que não seja. Lá no final do texto vou te explicar as razões disso e algumas atitudes que as últimas semanas, sobretudo os últimos dias, me fizeram tomar. Portanto, pode ler tranquilo, desarmado de sua ideologia, seja lá qual for.



Este é um texto sobre a nossa profissão.



O governo reeleito fez o primeiro discurso focado na tal da conciliação. Segundo a presidente reeleita, o Brasil não está dividido, precisamos construir pontes, etc. Ainda antes do resultado, tinha lido uma outra declaração dela dizendo que “atitudes não muito boas” foram tomadas na campanha, mas que isso “é do jogo”.



E comecei já a perceber alguns movimentos no sentido de “passar uma borracha” na baixaria que foi esta campanha e “seguir em frente” em prol do Brasil.



Pois acredito que passar essa borracha conciliatória é a pior coisa que o Brasil poderia fazer agora. Seria um movimento bem típico do brasileiro cordial, e isto me apavora. Porque é justamente assim que deixamos de evoluir e aprender: passando a borracha.



E o que isto tem a ver com a nossa profissão? Tem tudo a ver.



Olhando a foto de João Santana, me sinto como deve se sentir um médico sério e que ama sua profissão olhando para o Roger Abdelmassih. Me sinto ultrajado. Me sinto violentado. E acho que se você ama essa profissão, se tem algum orgulho da sua escolha de carreira e dos últimos anos que viveu fazendo isso, independentemente do seu voto, deveria se sentir da mesma forma.



Não estou disposto a passar a borracha numa campanha que foi baseada na difamação do adversário. É quase cômico lembrar que o Duda Mendonça foi criticado por “embelezar” ou “empacotar” o Lula em 2002. A crítica que soa hoje pueril era a de que o Lula de Duda era um produto, maquiado, photoshopado, pra conquistar um segmento da população que até então era impenetrável para o candidato.



Perto da campanha de João Santana, a campanha de Duda é um exemplo de ética e correção (não me refiro ao pagamento da mesma, apenas ao conteúdo). Duda fez algo próximo de Publicidade. João Santana fez Propaganda, naquele sentido mais perverso da palavra, que em outros idiomas se refere especificamente à manipulação das massas através de semiótica e retórica.



Me apaixonei há 25 anos por esta profissão, e não estou disposto a passar a borracha numa campanha que se baseou numa premissa de que “quanto mais e com mais violência eu bater menos tempo eu preciso falar de mim, porque os oponentes passarão a maior parte do tempo se defendendo”.



Não estou nem um pouco disposto a abrir mão de tantas discussões éticas que já tivemos aqui neste site e em nossos encontros, pra passar uma borracha numa campanha que espalhou cartazes claramente inspirados na cartilha de Joseph Goebbels e um conteúdo que faria Fernando Collor corar, com a famosa aparição de Miriam, a mãe de Lurian, retratando Lula como um homem vil que tentou forçar uma mulher a abortar.



Não estou disposto a aceitar a tese de que “todos bateram”, não comprarei a tese da generalização da pancadaria, porque sei o que vi. Pode repetir mil vezes esta tese, que eu não comprarei. Não me chame de idiota, por favor. Vi uma candidata honesta ser moída, com poucos golpes acima e muitos abaixo da linha da cintura. E vi esta candidata tomar a decisão de não revidar no mesmo nível. Resultado: foi premiada com a eliminação. Foi esvaziada. Foi massacrada publicamente, e sua atitude passiva foi relida como “fraqueza”, inclusive pela agressora. O senhor João Santana estabeleceu ali, no velho sistema pavloviano de recompensa e punição, as novas regras do jogo: vale absolutamente tudo. E agora, reconta-se a história dizendo que foi tudo muito feio e que todo mundo bateu. É como se um marciano chegasse à Terra no dia 6 de junho de 1944, no litoral da Normandia. Ele provavelmente diria: “esses americanos e ingleses são uns bárbaros, invadindo desse jeito o território dos alemães”.



Vi empresas e instituições, dos mais variados segmentos, que são sustentadas pelos nossos impostos, sendo usadas como máquina eleitoral. Caixa Econômica Federal, Prefeitura de São Paulo, Prefeitura do Rio, Correios, a lista é quase interminável. O planejamento de mídia da campanha do senhor João Santana transformava em veículos publicitários empresas que deveriam nos prestar serviços. Em Junho de 2013, o país foi pra rua pedir exatamente um uso muito, muito melhor e mais justo do nosso dinheiro de contribuintes, certo? Aparentemente não. Aparentemente era só pelos 20 centavos mesmo. Não, não estou disposto a passar uma borracha.



Desde criança desenvolvi um asco pela trapaça. Fazendo uma pequena regressão levanto a tese de pode ter sido a Copa de 78 que fez isso comigo. Aquele suborno do time do Perú, comprado pelo governo militar argentino para eliminar o Brasil, nunca desceu na minha goela. Lembro claramente de ver a final Argentina e Holanda na TV, chorando de raiva a cada rolo de papel que era atirado ao campo em festa, a cada gol de Kempes e Luke. Eu pensava: como eles podem comemorar felizes, sabendo que não ganharam na bola? Enfim, o ser humano é assim, e essa foi a dura notícia que eu recebi da vida, aos 9 anos de idade. Por isso não estou disposto a passar a borracha.



Não estou disposto a passar a borracha numa campanha que fez uso da desinformação como alavanca. Ao perceber que uma parte considerável das pessoas não conhecia o significado da palavra “leviana” o fabuloso marqueteiro teve a sacada: vamos colocar a palavra num contexto que ela tenha outra conotação. Vamos resignificá-la para algo como “rameira” ou “vagabunda”, e aumentar assim a rejeição do adversário. Esta campanha se alavancou na ignorância das pessoas (não estou falando da divisão ricos/pobres. Tem muito redator publicitário que ganha 10 paus que não sabe o significado). Por sinal, “leviana” significa “pessoa que expressa opinião improcedente”, e é normalmente usada para se defender de uma crítica sem sustentação ou mesmo falsa. Ou seja, é uma defesa, não um ataque. Além de obrigar o adversário a se defender o tempo todo, o senhor João Santana criou uma maneira de resignificar a defesa como ataque e demonizar o oponente justamente por isso. Goebbels ficaria orgulhoso.



Não estou disposto a passar a borracha numa campanha que conseguiu o que parecia impossível: jogar nossa profissão num nível abaixo do que já estava. Abaixo do que Marcos Valério já tinha jogado. Me lembro de alguém comentar num debate no primeiro Festival do CCSP que se sentia envergonhado de escrever “publicitário” numa ficha de check-in de hotel e como era ruim essa sensação. Meu amigo, você era feliz e não sabia.



Estou zero disposto a passar a borracha numa campanha que relembrou que “uma mentira repetida mil vezes pode se tornar verdade”. Num mundo tão carente de ética, e desesperado por atalhos e caminhos mais fáceis para conseguir objetivos, a campanha do senhor João Santana passou o pior exemplo possível. Um exemplo que, ao que tudo indica, deve se perpetuar. Na Folha de S.Paulo de hoje, o futuro ex-ministro Guido Mantega fez a seguinte afirmação: “O resultado das eleições mostra que a população aprovou a política econômica”. Tá bom pra você?



Por isso, não vou passar borracha nenhuma. Me lembrarei e lembrarei quem eu puder sobre o que aconteceu na campanha presidencial de 2014. A começar pelos meus filhos.



PS: Existem muitas outras razões pelas quais eu não estou disposto a passar a borracha. Aliás, bem mais relevantes para o país do que a completa destruição da profissão que escolhemos. Essa parte da desgraça só interessa a nós mesmos. Mas estas outras e maiores razões são políticas, ligadas à cidadania, à liberdade e ao futuro incerto deste país. Prometi que não faria isso aqui. E se não consegui, peço perdão e afirmo que será o ultimo texto meu que você verá aqui sobre o assunto. Não acho certo. Sou presidente de uma entidade profissional e este espaço é nosso, para falar da nossa atividade. Claro, é aberto, livre, falamos de outros assuntos e você está mais do que convidado para escrever sobre o que quiser aqui e mandar para a Laís. Ela certamente está entre as editoras mais independentes que já conheci na vida. Se quiser escrever sobre política, sobre sua posição ideológica, ótimo. Ela definirá, pelo equilíbrio e variedade de temas que rege como editora, a data de publicação. Enquanto eu for presidente desta entidade, portanto, não falarei mais aqui sobre política. Farei isso num blog que estrearei semana que vem, que chamarei de “Desgovernado”. Uma atitude pessoal, individual, apartidária, sincera, para expressar tudo que tem tirado o meu sono neste país.



Por Fernando Campos, sócio e diretor de criação da Santa Clara. Presidente do Clube de Criação de São Paulo



Leia texto anterior do Fernando Campos, "Sobre partidos e times de futebol", aqui.


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