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Criação na era da distração (Pedro Coutinho)
Antes que eu me distraia, vou começar este texto com um exemplo pessoal, que se aplica também às atividades que exerço. Dia desses, uma publicação me convidou para escrever a crítica de um filme. Ótimo! Além de roteirizar e dirigir filmes e publicidades, adoro falar sobre cinema.
Bom, escrevo a primeira frase. Ficou bem ruim. Apago. Plim. Mensagem no Zap. Não me controlo, vou lá e respondo. Refaço o início. Tá ok. Dá para seguir em frente, depois posso melhorar. Tá, agora preciso pesquisar no Google as informações técnicas do filme. Abro o navegador e a primeira página que aparece é um vídeo com os melhores momentos do último jogo do Flamengo. Deixo para assistir depois? Óbvio que não!
Nisso eu ainda não tinha escrito nem duas frases do texto. Plim de novo. Meme no grupo da firma. Plim mais uma vez. Convite para uma pré-estreia. Plim pela décima vez, e entro no embalo do celular. Checo Instagram, Slack, e-mail, sites de notícias, e quando me dou conta estou lendo uma matéria sobre uma lhama que fugiu de casa em Mogi das Cruzes.
Bem-vindo à era da distração. Quer dizer, bem-vindo, não! Ela já existe há um bom tempo. Ouvi esse termo pela primeira vez em 2018, num artigo do New York Times escrito pelo crítico musical Jon Pareles. Talvez exista há mais tempo, não sei, mas, segundo ele, deixamos para trás a era do entretenimento e entramos na era distração.
Não sou idiota de lutar contra a corrente: sim, estamos na era da distração, é fato, e essa era é um foguete, ou seja, não dá ré. E o que eu faço? Ioga, meditação, Ritalina, cogumelo? Nenhuma dessas opções! Ainda não tenho essas habilidades, nem acessos — aliás, se alguém quiser me recomendar um bom curso de meditação, tô aceitando —, mas o que tento fazer é refletir.
Essa reflexão, porém, é muito mais ampla do que minha simples tentativa de escrever uma crítica sobre um filme. A começar pelo próprio filme sobre o qual escrevi. A questão não é o enredo em si, mas me peguei pensando: o que consegue prender nossa atenção, seja num longa de duas horas ou numa publicidade de trinta segundos? O que cativa do começo, meio ao fim, sem que a mão coce para pegar o celular? Obviamente, não tenho respostas — talvez algum gênio da raça ou a IA tenham, eu não —, mas trago elucubrações.
Algoritmos, fórmulas, softwares, contabilidades, resultados. Hoje, todo e qualquer tipo de criação parece girar em torno de uma selva de conceitos ao mesmo tempo tangíveis e voláteis. Não que eles não sejam importantes. São muito; no entanto, o foco da criatividade parece estar perdido em regras que já chegam estabelecidas e muitas vezes não oferecem profundidade para a peça. Quando se determina que um comercial precisa começar no produto ou no rosto do personagem, isso, de fato, acrescenta ao conceito? Ou apenas esvazia a história que será contada? Ou, ainda, num roteiro de filme, ao se estabelecer que a mudança do primeiro para o segundo ato deve acontecer entre cinco e dez minutos de história, o espectador tem tempo suficiente para criar uma conexão com os personagens? Como já disse, não tenho a resposta exata. Pode ser que funcione, pode ser que não, mas existem dois fatores que considero necessários para ter consistência nesse tipo de escolha: tempo e sensibilidade humana.
E o tempo que estou falando não é a discussão sobre o sexo dos anjos, que durou séculos na idade média. Eu me refiro aqui ao prazo para entender se tudo o que foi colocado no papel e pensado nas imagens está de acordo com as intenções e as sensações necessárias para conduzir o espectador para dentro do universo proposto. E para atingir esse lugar é preciso, antes de tudo, saber captar, reconhecer e mobilizar emoções universais, algo que só a nossa sensibilidade é capaz de realizar.
A habilidade de criar um roteiro ou um conceito envolvente não surge de dentro da cartola, e também não aparece na primeira, na segunda nem na décima tentativa, muito menos partindo de regras pré-estabelecidas por algoritmos e aplicativos de IA. Eles podem agregar, é claro, mas nunca definir. O tempo e a sensibilidade humana, para mim, ainda são os maiores ativos que temos para lutar bravamente contra esse mundo repleto de tentações, que muitas vezes aparecem em formato de figurinhas sarcásticas e emojis fofos. Eles são altamente letais para distrair qualquer ser humano comum.
Falo tudo isso com propriedade de quem se distrai facilmente, porque sou de peixes com ascendente em gêmeos — ou seja, minha cabeça está sempre na lua e em dúvida do que fazer. Mesmo com essas características astrológicas não muito favoráveis, não é difícil me deixar levar quando aparece algo realmente impactante, com profundidade, que evidencia que cada escolha foi pensada com tempo e sensibilidade para conduzir o espectador a um determinado tipo de emoção, independente do gênero da história.
E o que a crítica que mencionei lá no começo tem a ver com tudo isso? Nada! Foi só um jeito de iniciar o texto para fisgar a atenção do leitor. Tomara que tenha dado certo. E sim, mesmo perdendo o foco algumas vezes, a crítica foi escrita, reescrita, revisada e entregue dentro do prazo. E não, o filme não era bom — me peguei várias vezes mexendo no celular enquanto assistia.
Pedro Coutinho, diretor de cena na Vetor Zero/Lobo
Leia texto anterior da seção "O Espaço é Seu", aqui.
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