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SxSW 2022

O poder de contar histórias para combater a fome

24.03.22

Um documentário dirigido pelo cineasta Ron Howard e feito para a National Geographic jogou luzes sobre uma forma de combater a fome que normalmente não vem à mente: contar histórias. Exibido no SxSW 2022, “We Feed People” ganhou painel com os realizadores para que eles falassem da produção e para debateram a importância de colocar holofotes sobre o esforço de muita gente que atua para dar comida a famílias sem recursos, a refugiados de guerras e tragédias climáticas e a quem foi fortemente atingido pela pandemia.

We Feed People” mostra o trabalho do chef espanhol José Andrés, que vive nos EUA desde os 21 anos. Seus restaurantes estrelados já apareceram bastante na mídia, mas a ONG World Central Kitchen (WCK), que fundou em 2010, conquistou um espaço de admiração e respeito sem igual. Por conta de suas ações humanitárias, iniciadas nesse mesmo ano, após o terremoto do Haiti, quando alimentou vítimas da tragédia com sua equipe, ele foi indicado ao Nobel da Paz em 2018. A ONG também capacita pessoas e busca soluções para a falta de comida no mundo.

Intitulado “Changing the Future of Food”, o painel teve a participação de Howard, da produtora executiva Sara Bernstein (Imagine Entertainment) e de Nate Mook, filmmaker e CEO da World Central Kitchen. Foram entrevistados por Matthew Odam, jornalista e crítico de restaurantes que disse que, após ter visto o documentário, desejava largar tudo para ajudar a alimentar as pessoas que passam fome no mundo.

No documentário, Andrés é mostrado como um homem dedicado, mas que também tem de se desdobrar para entender hábitos e até burocracias. Em uma das passagens, o chef diz que é preciso oferecer às pessoas o que elas estão acostumadas a comer. Ou seja, não adianta tentar empurrar goela abaixo algo que não faz parte daquela cultura. Em outro momento, afirma que comida se trata de comunidade.

A produção não dá foco apenas ao espanhol. A câmera capta Nate, outras pessoas que atuam na ONG, chefs de países para onde a equipe da WCK se desloca (eles estiveram recentemente na Ucrânia, servindo mais de 2 milhões de refeições, o que não está registrado na produção), e trabalhadores que ajudam a levar comida não importando as situações das estradas ou das ruínas das cidades onde vão alimentar vítimas de tragédias.

No painel, Nate contou que o trabalho da WCK é uma constante adaptação. Não dá para chegar a um local com muitos planos pré-aprovados. “Cada desastre é diferente. É preciso olhar para a situação em tempo real”, afirmou.

Perguntado sobre o que o atraiu para o projeto, Howard respondeu que foi o próprio Andrés. O cineasta tinha visto o chef em uma conferência falando do WCK. A figura carismática de Andrés logo lhe chamou atenção, mas ele ficou disposto a narrar o que o espanhol estava construindo, com suas agruras e frustrações.

Howard afirmou ainda que o trabalho que a ONG é uma história urgente para o mundo. Precisava ser contada. “O que José está fazendo é enorme. Espero que o filme mostre que muita gente pode fazer a diferença”.

Um detalhe engraçado é que Andrés declarou para o diretor que não gostaria de ter câmeras seguindo-o. Ao que Howard respondeu que é difícil dissociar filmes de câmeras. Portanto, ele tentou buscar ângulos que deixassem o chef mais à vontade.

Criando sistemas para ajudar pessoas

Em um dos momentos do documentário, que deverá estar disponível no Disney + no final de maio – ao menos nos EUA –, Andrés afirma que a ONG não apenas alimenta pessoas, e sim cria sistemas. Nate explicou que uma das coisas que aprenderam nessa jornada é que qualquer projeto precisa de um modelo. Embora cada tragédia seja uma tragédia, eles entenderam que cozinhar é a parte mais fácil da ajuda que prestam. Mas é preciso identificar para onde as refeições devem ir. É preciso estudar de que modo as pessoas vão conseguir recebê-las. É preciso ter certeza de que o alimento chegará ainda quente.

E há outras questões. “Como você garante que a comida que estamos cozinhando é culturalmente relevante e apropriada para a comunidade? Como você garante que a comunidade será incluída nas atividades que estamos fazendo? A coisa mais importante é construir esse sistema”, disse Nate.

Além disso, eles compreenderam que a comida é o que distribuem, mas nem sempre será assim. Nas Bahamas, depois da passagem do furacão Dorian, eles se viram entregando remédios. Também já ajudaram a evacuar pessoas de áreas perigosas, transportando-as em seus helicópteros. “Deixamos de lado as refeições e colocamos pessoas no lugar. Depois que você tem o sistema de distribuição configurado, você pode fazer qualquer coisa com ele. É sobre isso que José falava”, emendou.

Nate comentou que durante uma crise de saúde são chamados médicos para ajudar governos a buscar soluções. Na crise de alimento não se pensam em especialistas em comida. Seria necessário encontrar esses experts para fazer parte de esforços para combater a fome.

Inspiração para projetos-piloto

Howard acrescentou que o exemplo de Andrés e da WCK sugere que ninguém precisa esperar para fazer algo. Que se criem projetos-pilotos. “Ele disse que não tinha pensado na WCK. Nós, como cidadãos do mundo, podemos experimentar isso. Podemos lançar um piloto sem esperar que o governo faça um estudo a respeito ou algo assim”, declarou.

O CEO da WCK contou que o time fala muito sobre o alimento como direito humano universal. “Ninguém deveria passar fome. Há alimento para todos, mas nós não estamos distribuindo-o corretamente. Isso deveria estar no centro das discussões. Na emergência, as pessoas precisam ser alimentadas agora, não na próxima semana”, afirmou. Nate esclareceu que essa luta tem de envolver a política e eles estão se mobilizando também nesse sentido nos EUA. Qual o orçamento reservado para a insegurança alimentar? “Estamos exigindo que a Casa Branca faça uma conferência sobre nutrição, fome e saúde. A última vez que o governo realizou uma cúpula nacional sobre política alimentar foi em 1969”, criticou.

Comida, tecnologia, cultura

Em outra sessão do SxSW, “Future Intersections of Food, Technology & Culture”, o direito de ter comida à mesa também foi tema de debate. Como lembrado no painel, poucas coisas estão tão profundamente ligadas aos seres humanos como o alimento. Por meio de diversas tecnologias, tornou-se possível prover às populações mais opções alimentares. Se no passado, nossos ancestrais fizeram revolução ao preparar comida usando fogo, hoje a tecnologia é utilizada para entregar refeições por meio de aplicativos. Ou para ensinar como fazer um prato mais saudável.

No painel moderado por Emily Ma, head do Food for Google (equipe que tem a missão de organizar informações sobre alimentos no mundo para ajudar a construir um sistema alimentar sustentável, nutritivo e equitativo para todos), o valor das narrativas sobre projetos na área também foi discutido.

Um dos debatedores, Andrew Zimmern, chef, crítico gastronômico e personalidade da TV, observou que o combate à fome não será resolvido com uma única solução e sim com um conjunto de propostas. Famoso globalmente pela série “Comidas Bizarras”, do Travel Channel, ele disse que a questão alimentar envolve cultura, segurança econômica, fome, desperdício, tecnologia, crise climática, e mesmo diplomacia internacional (já que há tantas levas de imigração). “Precisamos acionar 20 alavancas diferentes e abaixá-las ao mesmo tempo se quisermos sobreviver como planeta até 2050. Hoje, não estamos indo na direção certa em velocidade suficiente”.

Criar programas que aumentem o acesso a alimentos e que evitem o desperdício é uma das formas de lidar com a insegurança alimentar, mas isso não está bastando. Denise Osterhues, diretora sênior de sustentabilidade e impacto social da rede supermercadista The Kroger, é responsável pela estratégia ESG da empresa e pelo programa Zero Hunger e da Zero Waste Foundation, compromissos assumidos para ajudar a criar comunidades livres da fome e do desperdício. Uma medida adotada pela entidade que dirige foi a criação de um fundo de inovação, que direciona financiamento para empreendedores que ajudam a construir um sistema alimentar mais sustentável e equitativo.

Denise compartilhou a experiência desses projetos, comentou que há uma busca maior por opções sustentáveis – o que poderia estar inclusive nos rótulos dos alimentos, que forneceriam dados como o local de origem de cada produto – e observou que hoje produzimos comida mais do que suficiente para alimentar a todos. “Mas ainda assim as pessoas estão passando fome. Acreditamos que haverá fome até pararmos de jogar tanta comida fora.”

Isso demonstra que, além da criação de projetos que atuem nessas frentes, é importante conscientizar as populações e atraí-las para que todos possam pensar em soluções. Daí, a necessidade de se contar histórias a respeito do alimento e das maneiras como nos relacionamos com ele. É nisso que se baseia o trabalho de Stephen Satterfield, fundador da Whetstone, uma empresa de mídia dedicada à cultura e história do alimento no mundo. Sommelier e empreendedor social, ele é também apresentador da série da NetflixHigh on the Hog”.

Para ele, há desafios que enfrentamos hoje e há os que enfrentaremos amanhã. Alguns deles já ocorriam “antes de qualquer um de nós estivesse aqui”. Satterfield afirmou que, como sociedade, fazemos um péssimo trabalho ao não olhar para trás, para entendermos o que mundo já passou. Isso nos daria contexto para encararmos os desafios atuais. “Quando falamos de termos um sistema alimentar com a aspiração de que seja mais equitativo, mais inclusivo e menos devastador ambientalmente, devemos nos perguntar se o sistema alimentar que construímos tem esses resultados – a resposta é não. Planejarmos um futuro sistema alimentar que não leve em conta as formas como este foi construído é uma visão incompleta”.

Como líder da Whetstone, Satterfield defende ir à fundo nas histórias da relação do ser humano com a comida. Ele acredita que a alimentação tem sido subestimada como forma de organizar e promover a saúde de uma comunidade, sobretudo em relação a povos não-brancos. Ele já declarou que tecnologias indígenas e pré-coloniais têm a capacidade de mudar nossa relação com a comida e, com isso, transformar nossa relação com a terra. Na série da Netflix, ele estabelece conexões entre a cultura alimentar africana e a norte-americana. Na Whetstone, uma “black company”, como disse, o olhar vai ainda mais longe.

Transformação a partir de novas narrativas 

A mudança que nós estamos tentando fazer é a mudança de narrativa. É importante reconhecer o fato de que a relação que a maioria das pessoas tem com a comida, no contexto norte-americano, não é, de verdade, uma relação. O que temos hoje são coisas que saem de embalagens, coisas com baixo valor nutricional e que já viajaram metade do mundo para estar na frente das pessoas”, afirmou. Ele destacou o trabalho feito por sua empresa, que publica uma revista, tem canal no YouTube e podcast. “Muito da conexão emocional de que falamos está ausente na maioria das nossas vidas diárias.

De acordo com Satterfield, narrar histórias é o tipo de poder mais difundido na sociedade. Mas a história precisa ser revisada. “Os problemas que enfrentamos como humanos se resumem a como nós nos entendemos e como entendemos a relação que temos com o mundo em que habitamos e com as comunidades das quais fazemos parte”, explicou. A questão é que muitas histórias que aprendemos são “derivadas de uma fonte dominante de poder”. Ele ressaltou que hoje é sabido que muitas pessoas foram apagadas das narrativas históricas. “O que estamos procurando fazer é basicamente afirmar que as narrativas históricas que temos precisam ser desafiadas. Precisamos ver a diversidade e recuperar narrativas das pessoas que ficaram ausentes. São as mesmas pessoas que estarão em maior risco pela crise climática e pela crise de saúde e alimentar”.

Ele reforçou que, quando se trata de comida, temos ignorado o quão poderosa e essencial é a história do que comemos. E comida é a parte mais compartilhada de nossa humanidade coletiva. “Portanto, ignorar as histórias que fazem parte da comida é perder uma oportunidade de pensar de forma interseccional. Quando marginalizamos a história e as pessoas que contribuíram para essa história, diminuímos o que poderia ser um poder galvanizador e uma força para o bem do mundo inteiro”, ressaltou.

Da plateia veio uma pergunta: “Quem passa fome precisa de ações, não de histórias. As histórias demoram muito (para ter efeito). Como impactar o sistema de modo mais rápido e realmente alimentar quem precisa? Isso não é importante?”. Satterfield não titubeou. “Eu costumo ouvir isso: há urgência e as pessoas estão famintas. O que sugiro é que está faltando o efeito da história que precisa ser realmente contada para criar a urgência que leve a comunidade a resolver esse problema. Entendo que as narrativas que colocam sobre nós atualmente fazem parecer com que não sejamos parte dessa correção urgente. O que estou defendendo é a criação de histórias que levem a isso”, explicou.

Clubeonline esteve no SxSW 2022 por conta do patrocínio de Africa; Arena; Beats; Chucky Jason; Live; Mutato; Netza&cossistema; New Vegas; 99; Publicis Brasil; Smiles e Soko.

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