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A segunda língua. A impossível terceira. (Erick Rosa)
A segunda língua.
A impossível terceira.
“Mas, como assim?
Isso, isso que está acontecendo aqui, eu e você nos comunicando, essa conversa.
Essa conversa. Isso. É. Um. Milagre.*”
O (*) asterisco está ali para indicar que o breve quase diálogo acima foi em inglês.
Volto no tempo.
Alguns anos atrás.
Estamos numa reunião em que um fotógrafo australiano que já vive no Japão desde dois mil e muito pouco, apresenta seu trabalho.
Ao redor da mesa, quase 20 japoneses, eu e uma tradutora.
A reunião acaba.
A tradutora se despede e ficamos naquela conversa pequena.
Em algum momento, éramos apenas eu, o australiano e um colega japonês.
Eu falo inglês, o australiano, inglês.
O japonês, uma quase mistura do japonês e inglês.
O australiano doma aquilo com maestria.
Um Cirque du Soleil verbal que impressiona.
Já eu soluço, gaguejo, peço mil desculpas.
Pulo de volta para a primeira linha desse texto.
Ao notar o meu segundo tropeço, o australiano se vira para mim e diz:
“Mas, jausus [ok, ele não disse isso, mas ajuda na descrição], você não fala japonês e mora no Japão?”
Bom, aquilo me dá um estalo.
Afinal, o australiano disse aquilo com um tom puxa tapete, abaixa as minhas calças, “você tem meleca no nariz.”
E fala alto para deixar aquela dúvida escapar do nosso círculo.
Mas, ao invés de ficar diminuto, cresço.
E olha que sou bem baixinho e ele era [e é] alto.
Fico muito maior do que ele, com todo o respeito.
Acrescento para ele contexto para o tal milagre da primeira linha desse texto:
“Eu penso em português, a minha primeira língua é o português.
Esse inglês que você está escutando é de longe a minha segunda língua.
Um brasileiro e um australiano conversando fluentemente em Tóquio, milagre.
Pelo menos para mim, é.”
[Silêncio. E nesse momento, o colega japonês já não está mais com a gente.]
Não crio clima. Não crio nada.
Corremos os dois para uma cerveja quente servida para o evento e deixamos o duelo de línguas para um distante futuro [esse texto -- que ele, com todo o respeito, não vai ler pois não sabe português.]
Volto para os meus quatorze anos.
Depois de crescer na mesma carioca escola, mudo para a Escola Americana do Rio de Janeiro.
Português vira inglês, quase no susto.
O cursinho, que eu antes fazia, leva uma surra da rotina de uma escola em que o inglês está por todo lado.
O meu inglês era bambo.
Tanto que eu fazia parte da exclusiva aula que deixava bem claro no próprio nome, quem eram os alunos cujo domínio da língua deixava a desejar. [English as a Second Language.]
Não era um selo de dar vergonha, mas vergonhazinha.
O nome da aula era um divisório numa escola chamada ‘americana’.
Breve corte para um flashback.
Em uma aula de história, a professora fazia um exercício de leitura.
Da esquerda para a direita. Cada aluno, um parágrafo.
E eu, ali, ciente de que algumas palavras eram minas das mais traiçoeiras, ficava treinando em silêncio.
O plano era simples.
Olho no livro. Olho na sequência das pessoas.
Pronto, o meu parágrafo era aquele e de mais ninguém.
Bom, em um determinado dia, estou ali, ensaiando as palavras, vírgulas, tudo vai dar certo.
Não.
Um colega que estava ao meu lado se levanta para ir ao banheiro.
Eu tento segurar ele pelo braço. Ninguém entende nada.
[Apenas um amigo no fundo da sala, que também fazia o já descrito ESL.
Ele olha para mim como se entendesse o meu desespero com precisão japonesa.]
O desconhecido parágrafo agora era meu.
Travo, suo, um quase soluço toma conta de mim.
No final, eu consigo.
Mas consigo estilo documentário daqueles caras que quebram um braço e escalam o Everest de costas usando o músculo da falange superior do dedão do pé esquerdo como combustível.
Não quero e não vou de maneira alguma aqui diminuir o privilégio que foi e que é estar ali, não sou doido. Devo muito, infinito muito, o fato de, um dia, meu pai ter tido a ideia e principalmente, os meios de me colocar ali.
Prometo que esse texto vai dar uma volta quase completa no final.
Da Escola Americana, faculdade nos Estados Unidos.
De lá, São Paulo.
De lá, Lisboa.
De lá, Singapura com quase dois anos de São Paulo no meio.
E de lá, Tóquio.
Nessa equação acima.
Nesse tabuleiro do war, de longe, entre faculdade e agora, o inglês foi o mais usado.
Português, escrevo no grupo de texto da família.
E falo, em voz, de manhã e de noite em casa.
Todo o resto, inglês.
Mas inglês com Verstappen vantagem sobre o português.
Até o português, noto que quando escrevo, uso palavras antigas.
Evito palavras que não sei escrever.
Eu sou redator. É um mini quase drama.
Ao escrever textos maiores em português, e-mails longos, até quando deixo mensagem de voz, pesco palavras e expressões que tenho no meu imaginário [amassado] Dicionário Aurélio [de bolso] pré-escola americana.
E aí que está a curva da coisa toda.
Mesmo com mais de 30 anos do mais puro inglês ditando o meu pão francês, ele não é perfeito. Mas nem de perto.
“Olha, obrigado pela presença, mas que fique claro desde já, que a minha primeira língua é o português. Se vocês não entenderem algo, por favor, levantem a mão que eu repito com o maior prazer.”
A introdução acima já foi usada em uma apresentação maior.
Um auditório completamente cheio de uma faculdade, sala abarrotada de clientes.
Um quase truque para desarmar a ocasional pesca de palavras ou qualquer generosa pausa quando o cérebro confunde as gavetas.
Mas, Erick, insisto.
Depois de mais de cinco anos no Japão, como é que você não aprendeu a falar japonês?
Olha, foram [e continua] mais de 30 anos para aprender inglês.
Em algum momento eu entendi que eu não conseguiria aprender japonês.
Então eu entrei num acordo comigo mesmo.
Depois de mais de cinco anos no Japão, não, não falo japonês.
Para a surpresa de quase todo mundo que descobre.
Não afirmo isso com orgulho. Longe disso.
Queria muito saber. E acho um superpoder quem sabe.
Mas também não tenho nenhuma vergonha.
Algumas pessoas têm facilidade em aprender línguas.
Outras, em falar com as sobrancelhas, o sorriso e as mãos.
E nessas, eu, modéstia à parte, sou shortlist de titanium.
Domino como poucos.
Muitas vezes vejo posts questionando [e julgando] a segunda língua dos outros, ou mesmo a terceira -- das pessoas.
Olha, de quem levou décadas para aprender uma segunda [e continua aprendendo diariamente], pensei em escrever esse texto.
Porque ao invés de ficar frustrado, descobri, no quase silêncio zen do Japão, o aprendizado de milhares de coisas.
Generosidade, respeito infinito pelos mais velhos, a porta certa para entrar mesmo quando você não sabe que raios existe do outro lado, o horário do trem para evitar ser esmagado.
E é claro.
Entre tantas coisas, aprendi com a mais absoluta certeza -- que um diálogo fluente por horas (em inglês) -- entre um carioca e um australiano, em Tóquio, é mesmo um milagre.
Erick Rosa, chief creative officer do Publicis Group, em Tóquio
Leia texto anterior deste mesmo autor, aqui.
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