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A Saudade Ratatouille (Erick Rosa)
A Saudade Ratatouille
(O pão com lascas de sal grosso, o ‘quase Jiro’, a mortadela da Luciana, o ramen da estação, a cerveja do Adam e Prince…)
Queijo minas, aroma de café coado (mas quando viaja da cozinha até você), pão francês com uma quantidade criminosa de manteiga gorda e pão de queijo. Mas pão de queijo quando você abre o forno e leva no rosto aquele bafo de calor que grita que está pronto. Saudade em forma de cheiro, sabor. Não se resume a comida, é claro. Poderia incluir aqui: águas de março em vinil com aquele som ao fundo da agulha passeando pelos riscos do LP, o pós-barba Drakkar Noir que meu pai usa até hoje, cheiro de jornal recém-entregue, textura do camarão catupiry da minha mãe e tantas outras coisas.
Cheguei a uma quase conclusão. Digo quase, pois tenho a certeza que não é lá assim tão nova. Mas, para efeito desse texto, pensei em um nome para a tal conclusão, ideia. É simples. Quando se vive longe por muito tempo, você acrescenta aos cinco sentidos um sexto: a "saudade ratatouille". Saudade essa que é composta de uma combinação da memória de todos os outros cinco sentidos. Não confundir com saudade saudade. A "saudade ratatouille" a que me refiro é igualmente romântica como a saudade que todos nós conhecemos tão bem. Não é melhor nem pior. É só um pouco diferente. A versão "ratatouille" a que me refiro é aquela tão bem ilustrada no filme da Pixar "Ratatouille". Sabe? Quando o crítico Anton Ego experimenta uma colherada do Ratatouille feito pelo ratinho Remy — e ao sentir o sabor — viaja violentamente para o passado — para o preciso instante em que ele era criança e comia o mesmo prato feito pelas mãos de sua querida mãe (assista à cena, abaixo).
É adrenalina, emoção, pupilas em chamas, fogos de artifício no peito, Luke Skywalkwer explodindo a Estrela da Morte, gol do Branco de falta contra a Holanda — quartas de final -- Copa de 94. Esse tipo de intensidade. Um tiro de bazooka de "saudade" no peito. Portanto, quanto mais tempo fora você vive, mais você desenvolve a tal "saudade ratatouille". Mais afinado fica esse sentido. Mais forte. Quase tão simples assim.
Pausa para explicar ainda mais a diferença entre os dois tipos de saudade -- para não correr o risco de ofender a saudade de ninguém. Primeiro, a saudade saudade. Você mora em São Paulo, mas é do Rio de Janeiro. Ao tomar um mate leão e comer um biscoito de polvilho numa padaria de São Paulo, você vai, carinhosamente lembrar da sua praia no Rio, verão, sol, infância tudo isso. Mas o fuso horário é o mesmo. Talvez você até foi ao Rio recentemente e viveu isso em pessoa. Tem uma foto sua lá no Instagram cheia de likes com a tal combinação de mate e polvilho, #infancia. Ou seja, dá saudade, mas é uma saudade saudade. A "saudade ratatouille" é a reentrada do DeLorean de "Back to the Future" com fogo no chão, descida desgovernada de uma montanha russa -- mas montanha russa com inspeção vencida, Keanu Reeves colocando aquele cabo de força na base do pescoço em “Matrix”. Essa não está na seção de romance. Mas na de ficção científica.
E tem uma coisa interessante da "saudade ratatouille". Com a mesma intensidade que um simples pão de queijo me transporta em fração de segundos para o balcão de uma padaria em São Paulo — elementos locais começam a se entronchar nas curvinhas do cérebro e pequenas cavidades do coração — para manifestar o mesmo efeito sobre Tóquio. Sim, porque com o tempo, a "saudade ratatouille" quebra a regra básica do próprio tempo. Ou seja, não é mais sobre largas distâncias entre passado e futuro. Você passa a se apegar a toda e qualquer coisa mais interessante que você vê pelo caminho para experienciar o "high" que é a tal "saudade ratatouille". A "saudade ratatouille" vicia.
O pequeno pão japonês cozinhado com uma bola de manteiga dentro com lascas de sal grosso da padaria que descobri por acidente ao lado de casa. A mortadela (sim, mortadela) que a Luciana descobriu numa pequena loja de vinhos perto do trabalho. O "Quase Jiro" (como eu carinhosamente chamo o melhor sushi que eu já comi aqui. Não é o "Jiro" do documentário da Netflix. Mas é quase.) A cervejaria com cervejas feitas com água de lugares remotos do Japão que o Adam (editor da agência) cisma em ir todas as semanas. Um ramem que servem debaixo da estação de trem que todas as vezes eu sorteio um diferente para provar. A batata doce com uma casca quase queimada caramelizada feita em pedras quentes que as pessoas comem no inverno no meio da tarde. O hambúrguer que servem de café da manhã num restaurante quase escondido e que eu pedi para acrescentarem um ovo mole. O sushi de esteira do subsolo do prédio onde fica a agência -- que tem uma fila que começa a se formar antes das 10 da manhã e por isso eu como lá depois das 4 da tarde. E como trilha sonora, os álbuns do Prince que um minúsculo bar em Golden Gai coloca sempre que eu estou por lá.
"Saudade ratatouille." Senti essa saudade duas vezes esses dias. A primeira vez, quando pesquei um pão de queijo quentinho de um cesto de palha numa festa infantil. As pupilas explodiram. A segunda, quando me debrucei sobre um balcão desse lugar que serve ramem localizado debaixo da estação de trem do bairro de Gotanda. Era tarde. Bem tarde. Neon lá fora. Tóquio no inverno. Frio. Muito frio. As paredes tremiam sempre que o trem passava. Todos comendo de pé. Onde cabem oito, comiam uns doze. Aquele vapor para todo lado. Aquele barulho de shrrrrrrrrrrr do ramem sendo sugado. Senti a mesma coisa. Explosão de pupilas.
E a certeza de que sempre que estiver numa situação semelhante — vou voltar para aquela estação — no momento em que o trem estiver passando e as paredes tremendo.
Desde os tempos de Lisboa, depois Singapura— e agora Tóquio -- recebo muitos emails de pessoas curiosas sobre como é viver (e trabalhar) fora.
A "saudade ratatouille" para mim é uma boa forma de explicar. Não o que é viver fora.
Mas sim, o que você leva para sempre, por estar vivendo.
Erick Rosa, chief creative officer do Publicis Groupe, em Tóquio
Leia a coluna anterior de Rosa, aqui.