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Shimizu e o Grand Prix de craft cravejado de diamantes (Erick Rosa)
Nada contra a cápsula de café. Mas tudo a favor do café coado.
A máquina da cápsula é bonita, tem lá seu charme.
Aquela coisa toda meio Clooney com grãos da Tanzânia, barulhinho de celular no vibrador seguido do espresso (sempre igual) com aquela quase espuminha.
Mas, com todo o respeito, café coado é outro campeonato.
Cápsula é mesa de som com auto-tune, coado é banquinho e violão.
Cápsula é explosão em Transformers do Michael Bay.
Coado é explosão da abertura de Casino do Saul Bass e Martin Scorsese.
Cápsula é pressa. Coado, prêmio, recompensa.
O que nos leva ao gentil Sr. Shimizu.
Shimizu é o proprietário de um minúsculo ponto que torra, vende e serve café.
Coado, é claro.
Breve desvio para contar como eu descobri o Shimizu e o café.
Pouco mais de dois anos atrás, estou quase perdido no meio do caos de Harajuku quando vejo, de longe, um oásis no meio de uma das ruas mais movimentadas do bairro. Oásis pois não tinha neon, fila, letreiro, algodão doce ou sacolas de compra. Ninguém tirava selfie na frente.
Em Harajaku, dependendo da rua e do dia, é uma cena rara. Na altura se chamava Drift Coffee.
O nome mudou. Hoje é Wet Sand. Tudo é igual. Tudo. Menos o nome. E como não tem letreiro, não faz lá tanta diferença. O que importa é o Sr. Shimizu.
Ele e o seu coador de pano.
Ou como gostamos de celebrar na nossa profissão: ele, seu coador de pano e o seu craft.
Como diria meu amigo e xará Erick Mendonça, o Sr. Shimizu é "crafteiro", crafteiro brabo.
"Espresso? Starbucks!" "Latte? Starbucks!" "Capuccino? Starbucks!"
Apesar das exclamações acima, quando o Sr. Shimizu aponta para a rua e explica para um desavisado turista onde encontrar um espresso, a frase (e variações da mesma) é falada com firmeza mas com farta dose de gentileza.
Essa cena se repete com certa frequência. A área é para turistas e o Sr. Shimuzu sabe disso.
É comum ver turistas atrás de cafés rápidos, fast-food, espressos. Mas ali, não.
Por isso, antes mesmo da (bem) curta lista de cafés disponíveis, lá está o aviso:
"Leva 5 minutos!", com o número 5 em vermelho. (Tirei uma foto.)
Isso nos leva ao ritual, ao Grand Prix de Craft cravejado de diamantes.
Já na minha primeira visita, estranhei (levantei as duas sobrancelhas com toda força) quando tudo começou. E com uma simples troca de olhares, consegui dele a permissão para tirar uma foto. Tirei vinte. Vou deixar algumas delas aqui, mas nunca farei justiça.
Arrisco dizer que certa vez filmei o processo por quase três minutos e o resultado ficou idêntico a uma foto. Ele se mexe, mas é imperceptível. É como a maré.
Explico: uma vez que o coador de pano já tem a quantidade precisa de café para uma pessoa, o Sr. Shimizu deita a chaleira (frame a frame) em câmera super hiper "meu Deus do céu" lenta, gota a gota a gota a gota.
Em algum momento, a gota se transforma em um fio de água quente quase invisível. Um fio de nylon. E o Shimizu fica ali, imóvel (como na foto que abre esse texto) por cinco infinitos minutos. Ao final do ritual, a chaleira é colocada sobre a bancada, o filtro de pano removido e o café é entregue.
E eu sei que para quem é vidrado, louco por café, tem toda uma coisa do café ser servido em xícara e tal. Mas o Sr. Shimizu serve num copo de papel. Simples, sem logo.
Copo de papel bege claro.
É compreensível, a pia é pequena. A loja é pequena.
É o café torrado, cada um em seu recipiente. A chaleira. O coador de pano. E o Sr. Shimizu.
Para mim, com quase toda a certeza, o Sr. Shimuzu proporciona uma das experiências mais "Japão" que eu tive o privilégio de testemunhar nesses quase dois anos e meio aqui.
Arrisco também dizer que ele resume Tóquio em 5 minutos: sereno, gentil, generoso e com uma explosão de sensações concentradas num mínimo espaço.
Esses dias fiz mais uma visita.
Confesso que evito ir muitas vezes para não correr o risco de ter qualquer experiência que possa estragar essa perfeita memória viva. Mas ele nunca decepciona.
Para ser honesto com a história toda, em uma única ocasião ele me viu se aproximar de longe e desenhou no rosto uma expressão de "Agora não é uma boa hora."
Olhei ao redor e encontrei quatro pessoas numa fila improvisada. Ele ali já tinha enfileirado pelo menos 20 minutos de café a ser coado. Naquele dia eu apenas sorri, balancei a cabeça como quem diz "muito obrigado, força" e segui em frente.
Nessa última visita, Harajuku estava pandemia-vazia. Entrei. Ele me reconheceu. Silêncio. Silêncio. Ele perguntou o meu grão preferido. Eu sinalizei que ele poderia escolher. Esquenta chaleira. Filtro de pano. Café. Foto. Foto. Ele me ofereceu um chocolate sem marca. Eu apontei para um boneco de Star Wars pendurado na parede completamente fora de lugar. Ele disse algo em japonês que eu não entendi, paguei e por alguns longos minutos apreciei o Grand Prix de Craft cravejado de diamantes do Sr. Shimizu.
Nada contra o café espresso e o gentil senhor do Starbucks ao lado da agência que me recebe sempre com um sorriso quase todas as manhãs.
Mas tudo a favor do Sr. Shimizu e do café coado.
Ao sair pesquei um recibo de taxi do bolso e pedi para ele escrever o nome dele no verso.
E enquanto ele escrevia "Shimizu" em letras de forma, entre goles do café expliquei a razão do "nome": "Um dia, eu gostaria muito de escrever sobre o senhor."
Erick Rosa, chief creative officer do Publicis Group, em Tóquio
Leia coluna anterior deste mesmo autor aqui.